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Em 1892, Henry Salt defendeu a importância dos direitos animais para o progresso social

Em ensaio, o escritor e reformador social pede que ativistas de outras causas considerem os direitos animais

Fotos: henrysalt.co.uk

Em 1892, o escritor e reformador social britânico Henry Salt publicou o livro “Animals’ Rights: Considered in Relation to Social Progress”, em que defende os direitos animais também como uma questão de progresso social. Atuante na causa humanitária, Salt chama atenção para que ativistas de outras causas também olhem para a causa animal.

Na obra, ele faz críticas a todos os tipos de exploração e uso de animais: para consumo, transporte, entretenimento (incluindo corrida com animais), caça, pesca, zoológicos, engaiolamento de pássaros, experimentos em laboratórios, entre outras práticas, buscando fortalecer seus argumentos também a partir de inúmeras referências de diferentes períodos.

Salt classifica como um erro supor que os direitos animais sejam de alguma forma antagônicos aos direitos humanos, como se defender os direitos animais significasse prejudicar os direitos humanos ou estabelecer uma disputa entre eles. “Não sejamos traídos nem por um momento pela enganosa falácia de que devemos estudar os direitos humanos primeiro e deixar que a questão animal se resolva a seguir […]” (2021, p. 22).

Ele sustenta que não há um conflito entre causas, e que portanto não faz sentido qualquer afirmação de que primeiro devemos atentar para as necessidades humanas e então, mais tarde, quando isso estiver resolvido, poderemos dar atenção para os animais não humanos. Sua crítica baseia-se na sua experiência como humanitarista e fundador da Liga Humanitária.

Por meio de Henry Salt, a Liga Humanitária visava estabelecer uma intersecção baseada em um movimento de causas humanas para não humanas, e exatamente porque ele percebeu que entre aqueles que buscavam um progresso social baseado na consideração de interesses humanos básicos que estavam sendo negligenciados, poucos consideravam a importância dos direitos animais – realidade que mesmo hoje ainda é predominante.

“É impossível que qualquer discussão sobre o princípio dos direitos animais possa ser adequada ou conclusiva se ignorar, como muitos dos chamados humanitários ainda ignoram, a imensa importância subjacente da questão alimentar” (2021, p. 41).

Nessa passagem Salt reprova a ideia de que é possível defender os direitos animais sem deixar de usar animais para fins alimentares. Esse é outro exemplo que também persiste na atualidade, na crença comum de que se possa defender os direitos animais somente até o limite em que não entre em conflito com interesses humanos.

Sobre uma realidade em que alguém considera uma causa social, mas há uma indiferença ou reprovação à causa dos direitos animais, Salt observa que “uma mesma pessoa pode ser, e frequentemente é, tão reacionária em um departamento de pensamento quanto é progressista em outro” (2021, p. 106).

Sua crítica também condiz com a realidade atual, em que ativistas que atuam contra a opressão humana e que buscam justiça social não veem problema na opressão contra animais não humanos. Afinal, combatê-la exigiria deles não tomarem parte nessa opressão por meio do consumo e uso de animais.

No ensaio publicado como livro, Salt explica que desde a criação da Liga Humanitária em 1891, seu objetivo é chamar atenção não somente para injustiças e crueldades que afetam humanos, mas também animais não humanos (2021, p. 102). Para o reformador social, que também se identificava como pacifista e socialista, o progresso, independentemente de época, deve ser medido pelo aumento da empatia e pela diminuição da crueldade não apenas em relação aos humanos como também na relação humana com outros animais.

Sua crítica também é direcionada à busca pelo aumento do lucro baseado na desconsideração de interesses de quem é afetado negativamente por essa busca:

“Enquanto o lucro pecuniário e o interesse próprio forem aceitos como princípios orientadores do comércio, permanecerá impossível garantir um tratamento adequado para os animais; porque é absurdo supor que a humanidade concordará em isentá-los dos resultados de uma tirania econômica da qual os homens também são vítimas. Se a adoração do grande deus “Lucro” é tão difícil para homens e mulheres, é provável que o resultado dessa luta impiedosa seja menos desastroso para os animais, que pela maioria das pessoas não são considerados seres semelhantes?” (2021, p. 114).

Nessa passagem, a observação de Salt evidencia que se uma realidade é ruim para os humanos, melhor não tem como ser para os animais não humanos que são as vítimas mais inconsideradas em relação a esses interesses. Ademais, ele já observava que a situação dos animais utilizados para fins alimentícios tinha piorado nas últimas décadas do século 19.

“Com o avanço da civilização, as crueldades indissociáveis do sistema de abate foram agravadas em vez de diminuídas, devido à crescente necessidade de transportar animais por longas distâncias por mar e terra, sob condições de pressa e dificuldades que geralmente impedem qualquer tipo de transporte humanitário.”

Nesse ponto é importante fazer uma observação de que tais condições, aliadas a outras, não seriam agravadas sem o aumento da participação do consumidor. Afinal, se a situação dos animais piorou com o tempo, e hoje é mais grave do que nos tempos de Salt, já que em quantidade nunca animais foram tão explorados e mortos, isso não seria possível sem o aumento da demanda baseada no uso de animais.

Mesmo a questão pecuniária colocada por Henry Salt só é possível porque há pessoas dispostas a pagar por produtos baseados na exploração animal. Afinal, como o mercado com base nesse sistema funcionaria com um boicote grande o suficiente para torná-lo impraticável? E de tal realidade opressiva também participam aqueles que são contra outros tipos de opressão.

É interessante notar que em 1892 Salt já sustentava que não havia desculpas para a não adesão ao vegetarianismo. Também, segundo ele, não poderia ser dito que o vegetarianismo era somente uma moda passageira. “Há 50 ou 100 anos, talvez houvesse alguma desculpa; não há absolutamente nenhuma desculpa [aceitável] no momento (2021, p. 45).

Ele fez uma observação que também coincide com o que seria apontado em documentários e por tantos ativistas de tempos mais recentes:

“Uma coisa é certa: se todos os consumidores de carne pudessem ver o que ocorre nos bastidores de muitos matadouros, logo seria posto fim a um sistema que é tão bárbaro quanto insalubre – uma causa frutífera de crueldade contra os animais e de perigo para o público.”

Essa observação de Salt vai ao encontro de sua observação de que houve um momento em que surgiu uma preocupação em afastar os matadouros da vista dos consumidores. Além disso, a atuação nos matadouros, passou, mais ainda, a ser delegada a pessoas de classes baixas, que continuam fazendo um trabalho que “a maioria das pessoas instruídas não faria” (2021, p. 46).

Logo ele classifica as pessoas que atuam nesse ramo por um mau salário também como vítimas de um sistema em que explorações se interseccionam, ainda que a realidade seja mais terrível para os não humanos que sofrem uma violência que jamais seria aceita por tantos humanos com naturalidade se praticada contra um ser humano.

O autor também sugere que a responsabilidade da violência que envolve o que é ofertado nos açougues não deve recair sobre aqueles que atuam nessa área em consequência da pressão econômica mais do que sobre aqueles que “demandam uma mercadoria desnecessária”. Ele propõe como solução reconstituir a sociedade de modo a garantir a cada cidadão um meio de vida decente e pacífico.

Salt vincula progresso social com uma consideração mais ampla de interesses, e porque o progresso social não pode ser pensado como sendo uma questão do humano somente em relação ao humano. Esse é um dos problemas que Salt, assim como Percy Shelley, além de outros pensadores, também já antecipavam como grave demais para ser negligenciado.

Em “Animals’ Rights: Considered in Relation to Social Progress” há várias passagens em que Henry Salt ressalta a importância de uma mudança de consciência, ao mesmo tempo em que sugere também que não sejam criadas rivalidades contraproducentes:

“[…] muitos reformadores e sinceros filantropos, homens que têm uma paixão genuína pela liberdade e progresso humanos, são friamente céticos ou mesmo amargamente hostis no que diz respeito aos direitos animais. Essa limitação orgânica de simpatias deve ser reconhecida e lamentada, mas é mais do que inútil para uma classe de reformadores ceder à culpa ou recriminação contra a outra. É certo que ambos trabalham para o mesmo fim último; e se eles não podem realmente cooperar, eles podem pelo menos abster-se de se frustrar e se opor desnecessariamente” (2021, p. 84).

Salt avalia que se o objetivo é o reconhecimento e validação dos interesses básicos e justos dos indivíduos é impossível sustentar que a admissão dos direitos humanos não envolva também a admissão dos direitos animais. Ele conclui que há nisso uma necessária tendência progressiva. O reformador social também via na educação um meio imprescindível para a mudança.

“A educação, no sentido mais amplo do termo, sempre foi e deve permanecer sempre como condição indispensável do progresso humanitário. Excelentes são as palavras de John Bright sobre o assunto: ‘A bondade para com os animais é um grande ponto. Se eu fosse professor em uma escola, seria uma parte muito importante do meu trabalho estimular cada menino e menina para o dever de ser gentil com todos os animais. É impossível dizer quanto sofrimento existe no mundo pela barbaridade ou indelicadeza que as pessoas mostram aos que chamamos de criaturas inferiores’” (2021, p. 86).

No entanto, como Salt observa, não são apenas as crianças que devem ser educadas no tratamento adequado dos animais, embora devam ser priorizadas. “Mas também nossos cientistas, nossos religiosos, nossos moralistas e nossos homens de letras” (2021, p. 88).

É perceptível que a questão central colocada por Henry Salt no final do século 19 já era o combate à opressão, e chamando a atenção para que não seja reconhecido como opressão somente o que é vivido por humanos. Ignorar isso é não reconhecer que a consideração por outras formas de vida também é parte fundamental do progresso social – porque permite um outro reconhecimento, mais amplo e mais inclusivo, de empatia e alteridade, e que é urgentemente necessário.

“Os esforços que as várias sociedades humanas estão fazendo agora em direções especiais, cada uma concentrando seu ataque em um abuso particular, devem ser complementados e fortalecidos por uma cruzada – uma cruzada intelectual, literária e social – contra a causa central da opressão: a desconsideração do parentesco natural entre o homem e os [outros] animais, e a consequente negação de seus direitos. Devemos insistir em ter toda a questão totalmente considerada e discutida com franqueza, e não devemos mais permitir que suas questões mais importantes sejam evitadas porque não segue a conveniência ou os preconceitos de pessoas que preferem o conforto de não dar atenção a elas” (2021. p. 89).

Enfim, para Henry Salt, o avanço do progresso social depende do quanto somos capazes de aperfeiçoar a empatia em relação não somente a humanos, mas também em relação aos outros animais. Portanto ele classifica como uma luta incompleta aquela que prioriza somente a experiência humana e ignora por conveniência as misérias não humanas.

Curiosidade

Henry Salt é uma das referências do filósofo utilitarista Peter Singer no livro “Libertação Animal”.

Referência

SALT, H.S. Animals’ Rights: Considered in Relation to Social Progress. Chapell Hill: Project Gutenberg, 2021. 124 p.

Leia também “Henry Salt, pioneiro na luta pelos direitos animais” e “Em 1813, poeta Percy Shelley alertou sobre impacto ambiental da carne“.

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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