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“A Menina e o Porquinho”, um filme para refletir sobre a exploração animal

Obra é uma adaptação do livro "Charlotte’s Web", publicado no Brasil como "A Teia de Charlotte", de E.B. White

O filme “A Menina e o Porquinho”, uma adaptação do livro “Charlotte’s Web”, publicado no Brasil como “A Teia de Charlotte”, de E.B. White, conta a história de uma garotinha que impede que seu pai mate um “leitão nanico”, considerado descartável pela indústria suína. O termo é usado em referência a animais que não crescem o suficiente para serem viáveis comercialmente. Por isso, são mortos logo após o nascimento, mesmo que sejam saudáveis.

É um filme que permite uma discussão sobre o especismo e a relação instrumental dos seres humanos com os animais mais explorados. Logo no começo, Fern já levanta um questionamento de confronto ao especismo quando pergunta ao pai se ele também a teria matado se ela fosse pequena demais quando nasceu. “Claro que não. Uma menininha é uma coisa, um porco nanico é outra.” Fern refuta: “Não tem diferença. Isso é injusto e incorreto. Como pode ser tão cruel?”

O pai insiste em matar o porquinho ao argumentar que a porca teve 11 leitões, mas tem somente dez tetas. “Ela não pode alimentá-lo.” Pode-se notar que essa justificativa transfere à porca como mãe (atribuindo-lhe impossibilidade de alimentar mais um – uma mãe limitada, incapaz de prover para todos), e ao porquinho (como filhote em desvantagem) as razões para que o recém-nascido não viva. Na realidade, ter ou não mais tetas não é sobre mãe e filho, e sim sobre o próprio sistema de instrumentalização da reprodução suína, como as modificações genéticas que fazem também com que um animal possa ter mais filhos do que é capaz de alimentar.

Culpar um ou outro animal não humano é prática comum quando animais são coisificados. Embora o problema esteja na coisificação, a tendência é olhar para o animal como responsável por seu “próprio azar”, que basicamente é resultado de uma deliberação humana que surge como resultado de um protagonismo de dominação.

Fern insiste e assume a responsabilidade de alimentar o porquinho para que ele não seja morto. Ela estabelece uma relação de companheirismo com ele, que recebe o nome Wilbur. Há uma reafirmação de uma mensagem de que “ele, na sua condição de porco, também é vida que importa e que demanda consideração”. No entanto, quando cresce, Wilbur é enviado para viver na propriedade do tio de Fern, onde divide um celeiro com outros animais.

A história vale-se do antropomorfismo para explicitar o valor não humano, sua consciência e autoconsciência, já que é após sua mudança que Wilbur começa a falar – o que também pode evocar relação de separação entre humanos e outros animais. A história então passa a ter como foco a preocupação em torno do dia em que Wilbur será morto. A estimativa é de que ele será morto antes do Natal, o que mais tarde dará início a uma jornada de comunhão entre os animais que compartilham o mesmo celeiro para criar motivos para adiar a morte de Wilbur – embora a princípio ele tenha o apoio somente de uma aranha.

Além de explorar elementos que geralmente são atribuídos somente a humanos, pode-se reconhecer que são as qualidades de Wilbur que ganham forma de palavras na teia da aranha Charlotte que o afastam da morte. Cada palavra, surgida num período conflitante para a sobrevivência do porquinho, destaca uma qualidade de Wilbur, que diferentemente dos outros animais do celeiro, é o único que está próximo de ser morto; porque os outros, embora instrumentalizados, “viverão enquanto produzirem”. O filme, que também evoca uma “romantização pecuária”, não entra na discussão de que “não produzir também significa o já não viver”. E que assim todos serão mortos num determinado momento.

No filme, são os animais que compartilham a condição não humana de Wilbur que buscam sensibilizar os humanos quando Fern se torna uma presença menos constante, que é também analogia ao desenvolvimento humano e a pressão para afastar-se de valores desenvolvidos por si própria na infância, como a empatia por outros animais. Ver em Wilbur uma qualidade que não costuma ser reconhecida em um animal dá-se pelo lugar que é imposto a ele pelo domínio humano.

Isso é evocado também pela crença na inferiorização, que deixa o porco em uma situação em que reconhecer o seu valor é reconhecer não o que é inerente a um porco, ou que todos os porcos devem receber alguma consideração, mas sim a sua excepcionalidade. Wilbur então é o sujeito uno de apreciação moral, uma apreciação que possa desmotivar seu abate e envio para o defumadouro para ser reduzido ao que é dito no filme: “linguiça apetitosa, bacon crocante…”

Ou seja, a vida de Wilbur, quando, por brevidade, celebrada, logo demanda outras palavras que busquem validar o seu valor, um valor que deve ser compatível ao comum da apreciação humana. A necessidade de fortalecer o que sobre Wilbur é sua condição de sujeito que deseja viver surge pelo que no filme é destacado na seguinte frase: “Como sabemos, os humanos perdem o interesse muito rápido.”

O rato Templeton faz uma das observações mais poderosas do filme quando Wilbur, na sua inocência, diz que humanos amam porcos. “Bem, eles amam carne de porco” – o cuidar pelo não cuidar. Ou seja, mesmo na alegada apreciação de um “criador” pelo animal vivo, a sua apreciação não é maior do que pelo resultado da morte do animal – nem a do consumidor, se sua relação com o porco é baseada nesse hábito, mesmo que como resultado de uma irreflexão. Afinal, se nossa relação com esses animais se dá somente na mesa, não é isso que diz o que “amamos” sobre eles?

Outro momento que merece menção é de outro animal ao questionar: “O que Wilbur fez à fazenda não é melhor que presunto?” Ou seja, Wilbur precisa se destacar, ser valioso à fazenda, gerar retorno, do contrário, será somente mais um animal. Mas “não sendo excepcional”, isso justificaria então o seu não viver? Mesmo que não escape ao especismo, é inegável que a “Menina e o Porquinho” também refuta o especismo.

Há uma relação contraditória, mas que não deixa de favorecer uma reflexão sobre a nossa relação com outros animais. Talvez precisemos apenas pensar que, ao ignorar os preciosismos da excepcionalidade, todos os animais explorados são Wilbur. E não merecem todos nossa consideração?

O filme está disponível no Prime Video.

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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