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Búfalos Selvagens: “Fome por carne nos imputa como carnívoros quando somos assassinos”

Uma reflexão sobre a relação entre humanos e outros animais a partir do novo livro de Ana Paula Maia

Há uma passagem em “Búfalos Selvagens”, novo livro de Ana Paula Maia, em que é chamada a atenção para uma realidade tão comumente negada nas relações de consumo: “Essa fome insaciável por carne e sangue, que nos imputa como carnívoros quando somos assassinos.”

Embora humanos sejam onívoros, a narrativa permite pensar numa apropriação baseada na supervalorização da carne, já que muitos humanos tendem a reconhecer-se como carnívoros, numa crença, equivocada por conveniência, na imprescindibilidade da carne.

Prova disso é o quanto é comum nos depararmos com pessoas afirmando sua identificação com o “carnivorismo”, ainda que o carnivorismo só faça sentido como realidade se viver fosse impossível sem o consumo de carne.

Isso mostra também o jogo de conveniente mudança de sentido, já que há uma apropriação também do “carnivorismo” não mais como característica biológica e sim de predileções, se ser “carnívoro” passa a ser uma expressão de grande apreço por carne, de apropriação da carne por desejo e não por sobrevivência.

Logo um sentido conflitua com outro, por não ter a mesma motivação e sequer a mesma necessidade. Afinal, o necessitar e o querer não podem se equivaler. Ademais, se somos assassinos na nossa relação com outros animais, podemos sê-los (mesmo que de forma indireta) por escolha, diferentemente de quem não pode (por escolha) e não racionaliza o assassinato como nós, como ocorre, por exemplo, na comparação estabelecida entre nós e outros animais. Há uma grande diferença entre o “pode ser” que cabe a um e o “não pode ser” que cabe ao outro, assim podendo esvaziar esses comparativos.

Mesmo na afirmação do “não viver sem carne”, usada comumente em relação com essa ressignificação de “carnívoro”, não há realmente um “não viver” e sim um “não querer”, se pela condição biológica humana consumir carne não é mais do que escolha. Embora o romance “Búfalos Selvagens” não tenha isso como tema, traz uma consideração realista nessa observação que surge na narrativa quando Edgar Wilson é convidado por Espartacus para trabalhar em um matadouro.

“Você aceitaria voltar pro matadouro, Edgar? Edgar Wilson se sente fustigado e não responde de imediato. Não sabe o que dizer. Esteve no matadouro do Milo há pouco mais de um ano. Há um pesar em suas lembranças quando se recorda do cheiro ardido da morte que pairava sobre o local.” Nessa passagem a carne pode ser evocada na sua relação com a morte, e que é uma relação que não tende a ser experimentada pelo consumidor; mas que é inegável para quem, sendo ou não consumidor de carne, já esteve ou atuou nesse contexto com o qual Edgar Wilson tem relação memorial.

Em outra passagem, Tomás diz: “Isso aqui não tá bom pra você? Melhor mortos do que ter que abater eles.” O questionamento e a conclusão surgem enquanto trabalham recolhendo animais mortos na estrada. Além da observação referenciar uma ausência de culpa, também podemos pensar nessa passagem em relação com a realidade de consumo, já que a maioria dos consumidores, mesmo que de forma irrefletida, tem contato regular com animais mortos por meio da alimentação – animais que são invisibilizados.

O que também chama atenção no romance é a relação estabelecida entre humanos e não humanos marginalizados, como no exemplo de um palhaço de circo que, sem identificação, é mantido temporariamente no frigorífico em vez do IML. Faz pensar também na questão material do corpo, em como os espaços são ocupados, e de onde os corpos são expropriados e como são expropriados.

Não por acaso há uma pontuação na narrativa de que “por essas bandas ninguém se importa com búfalos ou bufões. Seja um bubalino ou um palhaço assassinado”. Há outro momento posterior que evidencia o trânsito de realidades marginais, quando Edgar, Bronco e Tomás vão juntos ao IML onde deixam o corpo humano antes de seguirem para o matadouro. Quando a vida de tantos passa a girar em torno do matadouro, ficamos diante da constante da vida e da morte, e do fim da vida e do estabelecimento da morte como escolha e como ausência de escolha.

O corpo do palhaço Huracán é sepultado em um pequeno cemitério nos fundos do matadouro, ambiente indesejado e paradoxalmente desejado. Há uma contradição em um cemitério nesse ambiente, já que a maioria dos mortos em um matadouro não será sepultada. “Além disso, no mesmo local onde antes cremavam o gado doente, serviu durante meses para dar fim a centenas de corpos humanos vitimados por uma pandemia.” A pandemia aproximou corpos humanos de não humanos e, na ausência de vida, consumidores e aqueles que seriam consumidos se encontram, sem vida.

Quando decidem reativar um matadouro para abater búfalos é trazida uma referência real às fêmeas como “mais valiosas porque dão o leite com que se faz a muçarela. Os machos […] só servem para o abate […]”. Assim o sexo determina o potencial de produtificação, a duração da exploração e a ordem em que cada um será explorado e morto. Depois há uma descrição do que é parte desse processo em que tais animais são mero fim no lucro/consumo, portanto o tratamento não volta-se a condição deles como indivíduos com interesses próprios:

“[…] repara na entrada no matadouro, nos três caminhões que trazem os búfalos espremidos na caçamba em forma de gaiola. […] Edgar Wilson olha para a direita e os mugidos e resfolegares dos búfalos recém-chegados ecoam no campo aberto. À esquerda, uma espremida multidão suada e eufórica ecoa rumores de agonia. […] Edgar Wilson nunca cuidou de búfalos, mas percebe que, apesar da violenta robustez do corpo e dos olhos negros e grandes em que pode assistir ao abismo, são animais especiais. Mira novamente os olhos do búfalo e lá está, uma imagem borrada que não condiz com o que está concretizado à sua volta. Algo que se move devagar, que está ali, perto de Edgar e ele não pode ver. Que o espreita e o espanta, que lhe traz horror e admiração.” Nessa sequência de passagens podemos reconhecer como essa realidade é permeada por contradições, em que o reconhecimento do animal não é do tipo que o impede de ter um fim no matadouro – portanto vê-lo é também não vê-lo, e porque assim também preconiza a normalização desses fins.

A narrativa dá ao búfalo o lugar de sujeito que ele não tem naquele contexto, quando Edgar Wilson olha para o curral e “um dos búfalos olha para eles, como se participasse da conversa, como se pudesse escutar seus batimentos e suas respirações”. O búfalo é removido pela narrativa de uma mera passividade determinada por seu mero e arbitrário lugar no matadouro. Ele não ser salvo não faz dele menos indivíduo ou um não indivíduo.

Essa observação se apaga e se contrasta com o momento em que Bronco Gil, amigo de Edgar Wilson, abate um búfalo, podendo levar a um pesar também baseado numa correlação: “Bronco Gil aguarda o corpo quente, pesando centenas de quilos. Amarra as patas traseiras do búfalo e o suspende de cabeça para baixo, dando início à degola. O jato quente de sangue jorra com força diretamente numa valeta que corre para um tonel que será despejado no rio. Rio das Moscas.” Nessa descrição a narrativa já liga-se também não apenas ao que é comum sobre a realidade interna no matadouro, mas também ao que é ambientalmente inconsiderado. Afinal, além da violência, o seu substrato, que era parte da sustentação à vida, será descartado no rio.

Há um reforço posterior disso quando é narrado que os tonéis são insuficientes para que todo o sangue seja despejado diretamente no rio, obrigando a “despejar uma parte no lago, que corre para o Rio das Moscas por um braço estreito que rasga todo o terreno. O vale dos ruminantes, aos poucos, começa a se encher de mugido e cheiro de sangue”. Assim a passagem evoca também a experiência de morte dos animais, com o rio abrigando os despojos dessa violência, e que a partir dela também será contaminado.

Há também uma crítica ao uso de animais em circos na seguinte passagem, que remete principalmente ao passado de Mendonça, fundador do circo que ladeia o matadouro, e que antes teve como funcionário o palhaço Huracán, que morreria pouco depois de ser encontrado gravemente ferido na estrada, e que seria sepultado no fundo do matadouro:

“De chicote na mão, o domador de leões fazia as crianças tremerem. O chimpanzé velho e cansado precisava vestir a roupa de apresentação e fazer seu número repetitivo com o palhaço, sob o risco de dormir com fome. O elefante mal cabia sob a lona quente e puída, mas precisava manter a doçura e respeitar os comandos enfadonhos. Uma perturbação sem fim. Ao longo da vida, Mendonça adquiriu muitos animais para o circo. A maioria ilegalmente.”

No circo de Mendonça, Boris, um galo degolado meses antes, e que ainda percorre o picadeiro como “morto-vivo”, sendo uma das principais atrações, gera incômodo em Edgar Wilson, que decide dar um “descanso definitivo” ao animal. Mesmo numa condição superlativa e que não poderia ser chamada de “viva”, após ser degolado, Boris ainda era vítima da exploração humana.

“[…] no cemitério clandestino, abre uma pequena cova onde enterra Boris, o galo degolado. Observa-o por mais um instante. Aquilo foi um milagre. A vida se movendo na morte. A morte imitando a vida. Cobre o galo com terra e bate com as mãos para alisar a superfície. Finca uma pequena cruz feita com dois gravetos e barbante.”

A ação de Edgar Wilson retoma o seu constante paradoxo, de consideração pela vida animal enquanto subtrai vida animal; de dar um “descanso definitivo” a um animal instrumentalizado logo após abater tantos. Wilson personifica, no seu viver enquanto contradição, o desejo de expressar empatia diante do que existe por sua ausência.

“Búfalos Selvagens” é concebido de uma forma em que o desconforto pela morte humana também pode levar ao desconforto pela morte não humana, se pensamos nos fins dos corpos e no que é feito desses corpos, e também em como há lugares que existem para que a vida seja expressão de morte; e que essa morte seja voltada, por contradição, aos constantes anseios da vida. Sobre isso, referencio também a seguinte afirmação de Tomás: “Tudo está morto, ainda que pareça vivo.”

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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