Comer animais é cobri-los para não reconhecê-los

Uma reflexão a partir do livro “Suicídios Exemplares”, de Enrique Vila-Matas

No livro “Suicídios Exemplares”, Enrique Vila-Matas apresenta um jogador de futebol que fala sobre o seu dilema com os peixes: “Respondi explicando que era um problema que eu tinha, desde a infância com os peixes, por conta do horror que me causavam, e ainda me causam, os inexpressivos e extraviados olhares que se podem ver nos peixes arrebatados do mar.”

Ele diz isso após Victoria questioná-lo sobre uma história de que um amigo ou ele mesmo tinha dificuldade em comer peixe. Segundo o jogador, não apenas era preciso que alguém cobrisse a cabeça do animal para ele próprio comê-lo como ainda é. O jogador é incapaz de fazê-lo sem uma mediação que o dissocie da realidade do que está consumindo.

Ele também opera uma contradição quando o inexpressivo na verdade é expressivo. “Hoje ao meio dia o senhor Iborra nos convidou para comer e nos ofereceu um besugo, uma espécie de peixe, que precisou ter a cabeça coberta…”, relata o jogador.

O que é inexpressivo e extraviado é indissociável do que é esvaziado do peixe – a vida. Mesmo sem vida, os olhos não deixam de evocar que era o que havia. E se os olhos dos peixes arrebatados lhe causam horror é porque esse horror só surge a partir do horror da experiência de cada peixe em ser arrebatado.

Ele não deixa de comer peixe, mas também não consegue afastar o incômodo de enfrentar os olhos. Sequer pode comê-lo se vê-los. Nem mesmo pode cobri-los, porque difícil seria evitar vê-los. Portanto outra pessoa deve fazê-lo.

Seu ato de comer depende de uma dissociação que, não podendo ser plena em relação ao animal, precisa sê-lo numa parcialidade que não anule esse ato. Mas mesmo essa parcialidade depende de ignorar o peixe para o peixe, algo que é ameaçado pelo encontro com os olhos do peixe.

Isso revela que ele também não pode pescar nem preparar um peixe para comer, porque impossível seria não encontrar os olhos do peixe. Os olhos conectam o peixe à vida e à morte, e nessa circunstância de consumo são pura impossibilidade. Ao mesmo tempo, é essa ausência não como concreta, mas convenientemente ignorada, que para o jogador se constitui no oposto – a possibilidade.

O dilema do jogador de Vila-Matas com o peixe também serve-nos para pensar as contradições nas relações de consumo que envolvem outros animais e as dissociações como facilitadoras, como práticas normalizadas para a manutenção de hábitos que se autocentram no ser humano, ignorando suas consequências para os outros envolvidos (os que são e serão comidos).

Seu prazer em comer peixe depende de uma dissociação em que o peixe seja pensado somente como fim nesse interesse de comê-lo. Qualquer percepção fora disso, como “o horror dos olhos extraviados”, deve ser evitada, descartada.

Cobrir a cabeça do peixe é uma forma de apagar o peixe. É um peixe estar ali sem estar, porque sua forma reconhecida só pode ser sua forma desejada, não sua forma pensada na dimensão de importância da experiência para o peixe que culmina em estar exatamente ali.

A conclusão de “inexpressividade” do jogador em relação aos olhos do peixe articula um incômodo maior porque a afirmação de “inexpressão”, que não deixa de incomodar pelo que para o jogador é, contraditoriamente, expressão, evoca impossibilidade de uma forma mais visceral. Ademais, a conclusão de “inexpressão”, mesmo quando surge de um evidente incômodo, também pode operar uma atenuação.

A ideia de “inexpressão” pode gerar duas conclusões – como minimização ou como evidenciação de algo que se parece “inexpressivo” é porque a “expressão” foi violentamente arrebatada pelo próprio mal de uma arbitrária ação.

Os olhos do peixe permanecem como um registro físico da violência sofrida e um símbolo da subjetividade extinta. Enfim, comer animais é cobri-los para não reconhecê-los.

Observação

Este não é o único livro de Enrique Vila-Matas em que ele traz um personagem que se incomoda com um peixe morto. No romance “A Viagem Vertical” o incômodo surge com Julián, filho caçula do protagonista Federico Mayol.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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