Há uma maneira aceitável de matar quem não quer morrer?

Foto: Aitor Garmendia/Tras Los Muros

No filme “Dead Man Walking”, de Tim Robbins, um advogado discursa sobre a injeção letal aplicada contra um condenado à morte – o que permite uma reflexão sobre o gado também condenado à morte.

Ele diz que um dispositivo foi desenvolvido para “ser o mais humano de todos”. Um prisioneiro é amarrado e anestesiado com a primeira injeção. Então recebe uma segunda injeção, que implode seu pulmão; e a terceira para o seu coração. Parece que ele dorme.

“Enquanto por dentro seus órgãos passam pelo ‘armagedom’. Sua face se torceria, se deformaria e esticaria, mas a primeira injeção relaxa todos os músculos para não ser preciso ver um show de terror.”

Essa percepção do “externo e do visível” pode ser ponderada em outro contexto, já que animais mortos nos matadouros também são submetidos a um processo em que eles devem ser percebidos como criaturas que “morrem de forma pacífica”. Mas a prioridade é a experiência não humana ou a percepção ou impressão humana?

Embora a anulação do “show de terror” seja uma impossibilidade, isso não nos impede de acreditar nisso, se os instrumentos utilizados favorecem uma ideia de confiança pela aplicação técnica em um contexto industrial.

A maneira como animais morrem no matadouro é menos sobre eles do que sobre nós, já que a finalidade do “mais humano”, antropocêntrico por inerência, é ser “humano para nós” – para afastar a ideia de que “contribuímos com ações inaceitáveis”.

O “humanitário” existe para obstruir a ideia da crueldade, não a crueldade em si, que persiste porque é imanente; e para reforçar a crença de que o “mais humano” deve sempre ser pensado como “melhor”.

Não vemos o que acontece dentro do animal, não experimentamos o impacto de um disparo de pistola ou marreta pneumática que penetra seu crânio e atinge seu cérebro, visando a eficiência da sangria. Logo o “humanitário” é sobre velar o que não queremos ver enquanto preserva-se a crença no excepcionalismo humano.

O objetivo é enclausurar o terror dentro do animal e afastá-lo de nós. Assim podemos olhar para ele como se não fosse um ato cruel de violência, porque o que vemos como “não explícito” permite a manutenção da nossa percepção supremacista.

Leia também “Por que é importante a referência a outros animais como não humanos” e “Por que usamos o termo “humano” como bom e “animal” como mau?

David Arioch S.A. Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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