E se fosse anulada a diferença entre carne humana e não humana?

Em filme polonês, irmãos se transformam em reais carnívoros e não fazem mais distinção da carne humana e não humana

Disponível na Netflix, “Sem Conexão” é um filme de terror polonês de Bartosz Kowalski que apresenta dois personagens que servem a um debate sobre o consumo de animais.

Um dia, ainda crianças, eles observam uma esfera cair do céu e decidem levá-la para casa, guardando-a embaixo da cama. Pela proximidade com a esfera, eles se transformam em reais carnívoros e não fazem mais distinção da carne humana e não humana. É obliterado o limite do que é matável e comível.

Quem come carne de outros animais também é devorado como carne. Há uma analogia com a linguiça servida a um grupo de jovens em um acampamento, de onde sairão as vítimas dos irmãos.

Humanos, para eles, passam a ser só um meio de obter carne, e se o fim é em alguém, é em quem eles deixam de ser, no afastamento da comum condição humana, no deslocamento e ausência da pertença, e que faz dos outros humanos alvos de caça ou do arbitrário acaso – nada mais do que criaturas matáveis, mastigáveis e ingeríveis.

Para eles, se o humano vive é para não viver, para que possam matar, despedaçar, como imposto a tantos animais pelos humanos. Os irmãos acorrentam suas vítimas, penduram-nas para comê-las mais tarde, arrancam membros, moem seus corpos.

Em nenhum momento há um olhar para esses humanos como se estivessem diante do que, na negação do quem, deveria ser percebido não como fonte de carne, não como meio de saciar um intenso apetite baseado no derramamento de sangue, no sofrimento e na finitude.

A carne, eles comem como é, sem artifícios, na inerência do carnivorismo. É notório também que os irmãos não podem ser mortos, porque a astúcia humana não supera a força e resistência sobrenaturais deles. É pela segurança das “habilidades em vitimar” que eles reduzem humanos a alimentos.

Assim como fazemos com muitos animais, há uma prevalência da violência que dá-se pela superioridade baseada na força, na imposição da imobilidade para que tudo se possa arrancar.

Se a vulnerabilidade de tantos animais é o que facilita submetê-los ao matadouro, os irmãos exploram o mesmo em relação aos humanos, permitindo-se praticar com normalidade essa violência que também atende a um interesse de consumo.

David Arioch S.A. Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

Posts Recentes

Quando uma criança viu o sofrimento de um peixe

Uma criança viu pela primeira vez um peixe sendo tirado da água. Lutava com o…

11 horas ago

O animal não cabe dentro do interesse humano

Ver o interesse dos animais não significa querer ou fazer com que esse interesse prevaleça,…

1 dia ago

Se quem mata animais profissionalmente é cruel, devemos nos perguntar, é cruel em nome de quem?

Há muito tempo quem mata animais no matadouro é associado à crueldade. Encontramos exemplos em…

2 dias ago

A morte é uma libertação para o animal explorado?

Esta semana, quando um boi teve morte súbita a caminho de um matadouro no Paraná,…

4 dias ago

No século 19, Comte observou que humanos estavam tratando outros animais como “laboratórios nutritivos”

Em “A lição de sabedoria das vacas loucas”, Lévi-Strauss cita como Auguste Comte, mais conhecido…

6 dias ago

Homem que trabalhou em matadouro reconhece crueldade do abate

Conheci a história de um homem que trabalhou em um matadouro abatendo cerca de 500…

6 dias ago