No romance “A hora dos ruminantes”, do escritor José J. Veiga, comumente referenciado como um dos nomes de destaque do realismo fantástico brasileiro, há um momento em que a cidade de Manarairema é tomada por uma imensa quantidade de bovinos.
A concentração de bois é tão grande e tão dominante que os moradores da cidade são impedidos de circularem livremente. Assim, eles passam a viver no confinamento de suas próprias casas, mudando suas rotinas. Além disso, não podem impedir que os bovinos invadam seus espaços e façam o que quiserem.
Quando isso ocorre, a vontade que prevalece é a bovina e são eles que, a partir de suas ações, determinam o que os humanos podem ou não fazer. E não agem dessa forma como expressão do antagonismo ao viver humano, mas como expressão de um viver não humano.
Numa inversão, os moradores não buscam se sobrepor a esses animais. Eles se adaptam às ações dos ruminantes e não os tratam como se eles devessem corresponder aos interesses humanos. Com o tempo, moradores chegam a antagonizar os que tentam fazer algo em relação à dominante presença bovina, mesmo quando se sentem prejudicados.
Isso ocorre também em consequência de uma percepção que pode ser interpretada como uma sátira aos deveres indiretos para com os animais, já que a preocupação então é que, se os humanos são percebidos como antagônicos aos interesses bovinos, isso seria ruim para os moradores. Portanto é melhor não reagir ao que em relação a esses animais possa ser determinado como incômodo, ou mais do que isso, para tais animais.
Um dia, quando os moradores, já acostumados e conformados, passam a crer que tal realidade não mudará, os ruminantes desaparecem e os moradores já não encontram sequer um. Eles estranham e depois comemoram a retomada da liberdade de ir e vir, sem precisar mais adequar suas vidas àquela grande presença bovina.
Essa situação que surge no capítulo “O dia dos bois” permite pensar o domínio humano sobre bovinos e outros animais. Nessa alegoria, o humano já não pode perseverar sobre o não humano; e sendo ele próprio cercado pela condição não humana em uma forma que confronta diretamente o interesse humano, ele é obrigado a se adaptar a interesses que, numa perspectiva antropocêntrica, não são seus.
Mas essa não é a realidade de tantos animais e em um nível ainda mais visceral se consideramos não apenas como eles devem viver, mas o que é feito sobre o viver deles que, na maioria dos casos (quando é sobre exploração), sequer tem como fim o viver?
Ademais, em “O dia dos bois”, o animal não cabe dentro do doméstico se o doméstico é o que o determina somente como fim no interesse humano. Só de estarem lá e não se importarem com o interesse humano, nem reconhecerem o espaço humano como espaço inerentemente humano, isso já evoca uma resistência do não humano ao humano.
Os moradores de Manarairema poderiam ter tentado dominar esses animais enquanto eles estavam lá. Mas seria em vão, porque eram animais que não correspondiam naquele período à lógica da dominação, e a própria cidade já se inseria numa posição de passividade no contexto de outras relações.
O fato de os bovinos estarem em grande número também os amedrontava, porque superavam de longe o número de humanos. Sequer cogitava-se matá-los, o que torna o episódio ainda mais intrigante e antagônico à lógica do animal como fim no humano porque eram animais comumente pensados como “para a faca”.
Esse é outro ponto que permite-nos considerar a realidade atual. Afinal, hoje há no Brasil muito mais bovinos do que humanos. E se esses bovinos se rebelassem? Motivos para isso não faltam considerando a exploração e o fim imposto a eles.
Referência
VEIGA, J.J. A hora dos ruminantes. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 152 p.
Leia também “Quando dizemos que humanos não devem ser tratados como animais, por que não pensamos também nos animais?“, “Bois seriam abandonados para morrer se não fossem tratados como coisas?“, “Quando alguém me disse que o boi não estava chorando” e “O que resta ao boi faltando pouco para morrer?“