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Em “Sob a Pele”, humanos vivem realidade de outros animais no matadouro

Romance de Michel Faber, que ganhou adaptação para o cinema, permite pensar o humano como não humano e vice-versa

“Sob a Pele” é um romance do neerlandês Michel Faber que ganhou uma adaptação homônima de Jonathan Glazer para o cinema em 2014, protagonizada por Scarlett Johansson. O filme é interessante, mas para o que me interessa, que é discutir a questão da mercadorização e consumo de carne e a produtificação de corpos, a adaptação não traz a clareza, o detalhismo e a profundidade do livro.

Em “Sob a Pele”, Isserley, uma alienígena camuflada como humana, percorre estradas do interior da Escócia em busca de corpos humanos que possam ser reduzidos a pedaços de carne. Para minimizar problemas, ela busca selecionar não apenas corpos que tenham um volume satisfatório para essa finalidade, mas corpos de humanos que se desaparecidos – pelas atividades ordinárias que desempenham, por serem desempregados ou ausência pouco sentida ou sequer sentida – há menos risco de atraírem atenção.

Assim a redução desses corpos a meras formas cárneas funciona também como metáfora da condição marginal desses sujeitos. A marginalização também é a realidade comum dos animais produtificados, que não são conhecidos nem lembrados – são uma abstração, como esses humanos depois de abatidos e reduzidos a pedaços. Quem consome prescinde da história. Na verdade, não se importa com a história.

Também nisso, Faber subverte a realidade não humana e humana e permite pensar o humano como não humano e vice-versa. Ademais, em suas formas corporais reais, os alienígenas do romance estão mais próximos de outros animais do que dos humanos. O parecer-se humano existe somente para a expropriação do que é humano para um fim não humano nesse ardil em que o humano deve ser alimento e produto para outra espécie.

“Ela selecionava os homens como quem seleciona a próxima refeição – eram carne e nada além de carne”, é narrado no livro. Assim Isserley, uma fêmea em posição arbitrariamente dominante em relação aos homens, porém subalterna em relação aos seus, deveria escolher os homens da mesma forma que o gado é escolhido para ser abatido. Simultaneamente, isso ocorre quando há uma outra relação com animais inferiorizados e coisificados pelos humanos: “Vacas piscavam inocentemente para ela, quando ela passava velozmente gastando gasolina à toa.”

Essa relação de Isserley com animais não humanos, que não são incomodados por ela, é evocada em outras passagens do livro, como quando ela observa uma ovelha andando sobre pedras próximas ao mar. “Era difícil acreditar que a criatura não pudesse falar. Tinha toda a aparência de ser capaz disso. Apesar das feições bizarras, havia algo enganadoramente humano nela, o que levou Isserley, não pela primeira vez, a ignorar a divisão entre as espécies e tentar se comunicar.”  Mais tarde, ela encontra um grupo delas:

“Havia ovelhas pastando por ali, e não queria assustá-las. Ela gostava mais das ovelhas do que de qualquer outro bicho; […] Vistas sob pouca luz, quase podiam ser confundidas com crianças humanas.” Se nessas passagens há um conflito com os ditames do especismo a partir de algo tão comum, mas tão ignorado, que é observar um animal sem vinculá-lo a um fim que não em si mesmo, em outra há uma consideração que também serve para refletirmos sobre a empatia seletiva, tão comum quando estabelecemos que há animais para explorar/matar e outros para defender/proteger:

Ela gostava desta estrada, especialmente de um trecho infestado de tojo que ela chamava de Colina do Coelho, onde colônias de coelhos moravam e atravessavam pulando a qualquer hora do dia ou da noite. Isserley sempre passava bem devagar por ali, tomando cuidado para não atropelar estas criaturinhas encantadoras.” Capturar homens para reduzi-los à carne não impedia Isserley de ter consideração moral por outros animais, favorecendo a crítica ao lugar determinado a outros animais nas relações humanas-não humanas.

É notório também que a percepção de Isserley em relação aos homens que envia para a morte vale-se de uma comparação com animais explorados para consumo. Exemplo está na observação de que um dos homens a quem ela dá carona tem “mãos estreitas como pés de galinha”. Algumas descrições dos humanos que ela encontra também referenciam alimentos: “Suas cabeças encharcadas de chuva pareciam duas batatas descascadas, cada uma com um esguicho de molho marrom em cima […]”.

As diversas alusões à gordura e à relação carne-gordura no romance podem gerar incômodo e nojo quando se pensa em carne como alimento/produto. Também há uma constante referência às partes do corpo humano como carne, o que é mais revelador pelo contexto em que o fim do humano não deve ser em si mesmo: “Tirou as uvas para afivelar o cinto; uma andorinha tatuada voava em cada mão, no pedaço de carne entre o polegar e o indicador.”

Os homens que entram em seu carro são, quando ela decide que darão bom produto, atordoados por agulhas posicionadas no interior do assento passageiro – que inoculam uma substância denominada icpathua. Como são humanos, para humanos é ação errada, moralmente reprovada. No entanto podemos estabelecer comparação com o atordoamento de animais que serão degolados e que não deixam de ser considerados “procedimentos humanitários”. Mas diríamos o mesmo se praticado contra humanos? Nisso subsiste a premissa arbitrária do especismo. Ou seja, o que aceitamos em relação aos outros jamais admitiríamos a nós mesmos, ainda que tanto humanos quanto não humanos partilhem da autopreservação como interesse básico.

É a autopreservação um interesse também de animais pouco pensados quando se discute o especismo. No romance, Isserley dá carona a um vendedor de mexilhões que explica que eles levam cerca de uma semana para morrer. “Na verdade é bom deixá-los quietos por algum tempo para o excesso de água sair. E mantenha o saco fechado, senão eles vão se arrastar e se esconder debaixo de sua cama.”

Há inúmeras passagens que evocam uma reflexão sobre a relação interespécies, no que se baseia e na sua dimensão de arbitrariedade. O que também modifica o sentido de humano dos humanos no romance é que eles são referenciados como vodseis. Se isso pode ser percebido como tirar do humano o ser humano, o que humanos fazem com tantos animais para fins de lucro-consumo é tirar o animal do animal como parte da perpetuidade de um processo reducionista em que o “quem” não é pensado como alguém.

“Foi um jantar delicioso – Ensel disse a ela, no dialeto carregado de sua própria língua. – Coxas de voddisin com molho de serslida.” Voddisin, baseado no termo vodsel, é um derivativo referente à carne humana, mas sem que haja o uso do termo humano ainda que humano.

Também marginalizada entre os seus, Isserley recebe de Ensel, seu colega de trabalho, um filé de voddisin refogado, “iguaria” que só chega até ela mediante furto, já que é um produto destinado a uma classe social à qual ela não pertence. E não apenas ela, mas seus colegas também, incluindo o cozinheiro que alimenta os funcionários: “As melhores peças de carne eram sempre reservadas para o navio de carga, ele recebia somente carne de qualidade inferior, pescoços, vísceras e extremidades.” Isso evidencia também como a inserção nas classes determinam quais partes da violência serão consumidas, a quem serão atribuídas.

Isserley e seus colegas são parte de uma máquina produtiva que é essencialmente destrutiva, mas da qual também não podem participar como consumidores. O contato com a “iguaria”, que não ocorreria senão pela apropriação, é apresentado da seguinte forma: “[…] ainda úmido e quente, irresistível e nojento ao mesmo tempo.” A passagem evoca o dilema da carne como produto e da carne como resultado de um corpo morto.

Quando quatro vodseis fogem antes de serem abatidos e vendidos como carne, a descrição da aparência deles remete à modificação como resultado da industrialização dos corpos:

A ideia de um vodsel com os pelos raspados, castrado, cevado, com os intestinos modificados, quimicamente purificado aparecendo numa delegacia de polícia ou num hospital era um pesadelo transformado em realidade. Os esconderijos mais prováveis eram os abrigos de gado, o estábulo e o velho celeiro. […].” A descrição retoma o que é real sobre a criação de animais para consumo, que é também usar todos os meios necessários (tornando mais inatural o inatural) para que gerem em pouco tempo o maior volume possível de carne.

Os humanos em “Sob a Pele” são perseguidos como portadores de uma carne que, sendo eles próprios, fundamenta-se na contradição do deixar de ser – porque a carne se desenvolve como parte da determinação de aproximação com a morte e consumação da morte. “Vodseis de um mês, com sua montanha de carne, não eram tão ágeis.” Muitos animais fora da ficção, e para o mesmo fim, também não são.

O silenciamento dos humanos (vodseis) que serão reduzidos à carne se dá pela literalidade, pela remoção de suas línguas. Em comparação com a realidade, os animais subjugados para consumo não são silenciados da mesma forma, mas são tratados como se feitos de silêncio, pelas possibilidades de ignorar e dissimular suas ações ou mesmo de puni-los.

Durante a fuga dos vodseis há uma passagem que permite comparação com outros animais e como são tratados como produtos mesmo vivos: “Os olhos dos vodseis estavam arregalados de medo, e a cerca de arame farpado só ia até a cintura deles, mas suas pernas geladas e machucadas, suportando o peso dos músculos e da gordura adquirida em um mês de regime nos cercados, recusavam-se a saltar do chão gelado […]. […]havia tanta carne e tanto músculo nos braços e no peito do vodsel que ele não conseguiu movimentar direito o braço.” O trecho final pode ser equiparado à realidade dos muitos frangos que acumulam peso demais tão rapidamente que suas articulações não se desenvolvem o suficiente para suportarem tanto peso, o que é comum como parte da arbitrária realidade comum da “industrialização dos corpos”.

A resistência dos vodseis, que vincula-se ao desejo de libertação, é ignorada e eles acabam sendo abatidos. A mesma inconsideração é dada aos animais no contexto da pecuária. O interesse imposto a eles deve prevalecer sobre qualquer outro. Mas a curta liberdade dos vodseis ocorre com a ajuda de Amlis Vess, que é o filho do proprietário dessa indústria de produtificação humana. Ele acaba sendo o contraponto e uma espécie de baliza moral não especista, mas que não é levado a sério por sua posição privilegiada, ainda que diga que revelará a todos como esse sistema é cruel, visando conquistar apoio para romper esse ciclo de exploração e matança.

Nesse ponto seu anseio pela “não opressão dos vodseis” é preterido por seu lugar social. Se Isserley crê que ele nada sabe sobre opressão, o fato de ela crer que é adequado ao oprimido oprimir outros oprimidos (reduzidos a pedaços de carne) favorece analogia com quem vive alguma opressão, porém não vê problema na opressão animal (o outro); assim como quem defende o fim das opressões humanas e olha com indiferença para as opressões não humanas.

O que não aparece no filme, mas conta com uma riqueza descritiva no livro é o lugar onde Isserley desiste de procurar Vess, com o intuito de tirar satisfação sobre a libertação dos vodseis, e onde ela jamais esteve. Essa revelação externa um conflito, porque ela nunca foi aos “níveis mais profundos” acompanhar a matança e o processamento, alegando claustrofobia. “O elevador estava descendo, em direção à Sala de Processamento e aos cercados dos vodseis – exatamente onde Isserley não queria ir. Irritada, ela bateu no botão de subir com a palma da mão. […] Só tinha entrado um cheiro desagradável de bicho, mais nada.”

Fora dos “níveis profundos”, quando questiona Amlis Vess, ele responde que “não acredita em matança de animais”. Sua fala tem sentido de reprovação e deslegitimação. Nesse exemplo são os vodseis (humanos) que logo são pensados como animais. E Vess continua seu discurso: “Esta carne que você acabou de comer – disse ele com toda a calma [a Isserley] – é o corpo de uma criatura que vivia e respirava tal como você e eu. Hilis [o cozinheiro] suspirou e revirou os olhos em sinal de desalento e compaixão […]. […] Somos todos iguais sob a pele – replicou Amlis.”

É perceptível que a descrição de Faber dos “níveis profundos” é análoga à realidade de tantos animais submetidos a fins humanos. Ademais, podemos pensar em “níveis profundos” como níveis que não queremos atingir da nossa própria consciência e pelo incômodo em que podem resultar:

“O teto não teria muito mais do que um metro e meio de altura, e os eflúvios acumulados da respiração do gado pairavam sobre as faixas fluorescentes. As baias dos vodseis, uma bateria de cercadinhos que se sucediam ao longo das paredes, ocupavam praticamente o andar inteiro; só havia um espaço no meio para o corredor. Nas jaulas à esquerda ficavam os de um mês; à direita, os que estavam em processo; e bem ao fundo, junto à última parede defronte ao elevador, os recém-chegados. […] Pelo que se lembrava, as jaulas eram menores e mais sombrias do que antes; as peças de madeira descascadas e sem verniz, as grades enferrujadas, com sinais de fezes e outras substâncias não identificáveis em vários pontos. E, claro, o gado acrescentara mau cheiro e uma densidade vultosa de carne, criando esse ambiente úmido com ar reciclado. […] Os poucos vodseis com cerca de um mês de processamento amontoavam-se formando uma massa de carne pulsante, de tal modo que era difícil distinguir o que separava um corpo do próximo, os membros se confundindo. […] Em torno dos espécimes de um mês, as esteiras de palha grossa reluziam com a diarreia escura daquele estágio de maturidade. Nada que pudesse causar o menor dano à digestão humana sobrevivia em seus intestinos grossos; cada micróbio externo fora retirado e substituído pela melhor e mais confiável das bactérias. Eles se agarravam uns aos outros, como para preservar a espécie. Restavam quatro deles; ontem era cinco, anteontem, seis.”

Isserley ainda resiste a estender sua empatia aos humanos confinados para abate. Mas ela não deixa de evocar o que é análogo à realidade que envolve pecuária e indústria da carne. Em um determinado momento, encontram um vodsel que, sem língua, faz desenhos no chão com um graveto. “Ninguém me falou que eles tinham uma linguagem. Meu pai sempre os descreveu como legumes com pernas.” Sobre essa observação de Amlis Vess, que não transitou pelo mundo dos humanos como Isserley, podemos citar séculos de negação por inúmeros pensadores de que animais não humanos, incluindo muitos do que exploramos, não têm linguagem; e o que continua sendo defendido hoje por determinados pensadores. Esse preconceito é baseado na crença antropocêntrica de que só pode ser considerado linguagem o que é inerentemente humano, como se a linguagem em si não pudesse até mesmo preceder o ser humano, já que sabemos que ele está longe de ser o animal mais antigo a habitar o planeta.

Depois o vodsel que segura o graveto escreve uma palavra que Isserley diz desconhecer: CLEMÊNCIA. “Por fim, [ela] deu-se conta de aquela palavra não tinha registro na sua língua, era um conceito que pura e simplesmente não existia.” A negação também é outra constante para preterir complexidade e valores aos humanos produtificados. O mesmo, mais uma vez, mimetiza a ação humana em relação a outros animais fora da ficção.

Isserley faz um grande esforço para demover Amlis de crer que aqueles animais têm tal habilidade, recorrendo à depreciação da forma humana: o corpo “grosseiro”, o “mau cheiro”, o “olhar imbecilizado”, “a forma que o suor escorria por entre os dedos dos pés gordos”.

O que chama atenção também é a seguinte afirmação de Isserley: “Eu sou um ser humano, não um vodsel.” Nesse momento fica claro que há uma apropriação do que é ser humano para que outros seres humanos sejam privados da própria constituição e identificação como humanos – as manipulações de seus corpos, as mutilações, as privações tiram deles não apenas a autonomia, mas a própria identidade humana, que passa a ser de outros; como também na afirmação de Isserley como humana, pela via da apropriação do sentido de ser humano. Isso surge como gradação do seu próprio estado de confusão à medida em que situa-se entre dois mundos.

Mais tarde, depois de conhecer a miserável área de confinamento, ela chega pela primeira vez à área de abate, onde os discursos imitam o discurso humano no matadouro, visando também demonstrar uma “certa consideração por quem será violentamente morto”: “A rapidez minimiza o trauma. Além disso, não queremos causar sofrimento além da conta, não é mesmo?”, diz o abatedor Unser.

“A ponta da faca de Unser pairava sobre o torso do vodsel; Iserley sabia que a ação seguinte seria, certamente, abrir o animal do pescoço até o gancho das pernas, separando a carne da pele como se fosse a frente de dois macacões. Ela olhou demoradamente para a faca que permanecia no ar por um tempo enorme.” A descrição acima, que poderia ser sobre bovinos ou suínos, reproduz mais uma vez em relação ao humano o que é comumente não humano.

A referência aos vodseis então passa a ser de “produtos finais”. A justificativa para esses usos volta-se à institucionalização, porque não se pensa em vida e morte, mas em fins e aplicações: “Nós estamos trabalhando – disse o processador-chefe severamente. – Aqui não há lugar para sentimentos. Essa carne toda não deixa você perturbado? – brincou ela. Ele ignorou a ironia. Está tudo morto agora – respondeu ele simplesmente. Não posso fazer nada, posso?”

Além do clichê fatalista como justificativa para a continuidade da matança, eufemismos comuns à pecuária, como chamar de “creche” o lugar para onde são enviados os leitõezinhos forçadamente desmamados, também têm seus equivalentes em “Sob a Pele”. O processo de remoção de língua humana, por exemplo, ocorre em um local chamado “berço”.

O que também evoca a responsabilidade do consumidor surge em uma breve justificativa de Isserley: “Não há nada de estranho ocorrendo aqui – falou ela. É apenas uma questão de…oferta e procura.” Ela não está errada, se a carne humana em “Sob a Pele” ou a carne de outros animais fora da ficção têm sua comercialização baseada no interesse dos consumidores. Afinal, não há lucro sem consumo.

Amlis Vess, depois de afirmar que “todo esse negócio se baseia na mais terrível crueldade”, recorre a outro argumento: “Depois que as pessoas começaram a comer carne, certas doenças misteriosas foram identificadas e ocorreram algumas mortes inexplicáveis.” Essa é outra referência à realidade em dois pontos – a necessidade do personagem de buscar outras razões para que outros indivíduos não participem dessa prática e o surgimento de determinadas doenças em relação com a carne. Os discursos então mudam com a necessidade que também têm seu alcance baseado na pluralidade.

Um conflito sobre empatia seletiva é retomado quando Amlis e Isserley conversam sobre ovelhas e ele pergunta se ela já tentou usá-las como carne: “Isserley ficou pasma. Você está falando sério? Elas são…elas andam de quatro. Amlis, não está vendo? Têm pelo, rabos, traços fisionômicos não muito diferentes dos nossos…Ora – ele contra-atacou manhosamente – se é para comer a carne de um ser vivo…Isserley suspirou; ela gostaria de encostar a ponta do dedo sobre os lábios dele e fazê-lo calar.”

A consideração de Isserley para não comer ovelhas baseia-se no critério da estima e semelhança. Porém, mesmo resistente, algo muda. Mais tarde, ela pensa em resgatar Pennington, um humano que ela enviou para ser morto, ainda que fosse tarde demais para salvá-lo. A conclusão é seguida pela decisão de resgatar o cachorro que vivia com Pennington, deixado sozinho em uma van, que era sua única companhia e alguém por quem ele tanto prezava. Até então ela não se importava com cães.

Também é com base nesse conflito de consciência que Isserley abandona a vida de capturar vodseis. Mas a caminho de lugar nenhum, ela decide comer um rocambole de frango. Arrepende-se e passa tão mal que se contorce para vomitar, chegando a pensar que vai morrer. E a narrativa prossegue, fazendo referência aos alimentos produzidos a partir da terra: “Ela não morreria de fome. Havia batatas crescendo nos campos, nabos à vontade para as ovelhas, maçãs nas árvores. Tudo perfeitamente dimensionado para o consumo humano, como os homens da fazenda Ablach comprovavam todos os dias no Refeitório. […] Além do mais, poderia descobrir alimentos que sequer imaginava […]. Estava tudo ali mesmo, em algum lugar, tinha certeza.”

Em “Sob a Pele”, pensar os humanos como animais de forma normalmente impensada pode nos aproximar de um outro olhar sobre a instrumentalização e produtificação de tantas vidas. Mesmo o pouco que sabemos sobre os personagens vitimados pode ser o suficiente para despertar um sentimento de empatia que favorece pensar o não humano a partir do humano; e isso pode ser intensificado também pela percepção dos estados de marginalização e exclusão dos indivíduos.

Referência

FABER, M. Sob a Pele. 1. ed. São Paulo: Record, 2006. 320 p.

Leia também: “Em ‘Viagens de Gulliver’ há um país em que humanos são considerados irracionais por outros animais“, “Búfalos Selvagens: ‘Fome por carne nos imputa como carnívoros quando somos assassinos‘”, “No século 19, russo escreveu uma história de luta pela libertação animal” e “O boi não é mais do que o interesse humano?

 

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

3 respostas

  1. Quando peguei o livro pra ler, percebi que a leitura não estava fluindo, achei um pouco entediante. Mas talvez essa percepção seja por conta do filme, que, mesmo eu sabendo não ser uma adaptação fiel da narrativa literária, “contaminava” meu imaginário ao me vir à mente o rosto da Scarlett Johansson.

    Também gostei do filme, mas o que me incomodou foi que a protagonista passou grande parte do longa usando um casaco de pele, e parece que não era sintética. Não sei se isso foi uma provocação do diretor, mas ali ela estava, literalmente, sob a pele.

    Vou dar uma nova chance ao livro depois das suas reflexões; grato pelo texto!

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