Gary Francione explica por que o veganismo é possível

Francione: “Devemos rejeitar a posição flagrante e bem-estarista do especismo por uma questão muito clara” (Foto: Gary Francione/Vimeo)

No ano passado, o professor de direito da Rutgers School of Law, de Newark, Nova Jersey, Gary Francione, uma das referências na discussão sobre direitos animais, publicou um artigo intitulado “Veganism as a Matter of Justice: A Short Reply to the Welfarists” nos sites Ecorazzi e Abolitionist Approach.

No texto, Francione rebate as afirmações dos bem-estaristas de que o veganismo não é possível no mundo em que vivemos enquanto um imperativo moral, e que é preciso se adaptar à realidade da exploração animal – considerando apenas que devemos minimizar a violência e a crueldade contra as criaturas não humanas, mas sem abrir mão do consumo de alimentos e produtos de origem animal. Para apoiar essa posição, os bem-estaristas alegam que se compramos alimentos veganos em lojas que vendem produtos de origem animal, não estamos sendo justos, logo não podemos assumir que sob essa perspectiva de permissividade o veganismo está em total acordo com o princípio da justiça que defendemos.

Porém, Gary Francione aponta que esse discurso é fragilizado porque, embora tenha como eixo norteador uma suposta baliza moral, é usado de forma capciosa em um contexto bastante específico, sem ponderar abrangência, possibilidade e até mesmo comparação com outras formas de preconceito e condicionamento que vão na contramão da justiça social, embora permitam uma avaliação de cenários congêneres.

Francione diz que quando ele promove o veganismo como um imperativo moral, pelo simples fato de que o veganismo é algo que nós somos moralmente obrigados a adotar, já que não temos o direito de criar e matar animais para nos beneficiar, algum bem-estarista costuma dizer que ao comprar comida vegana no supermercado e dar dinheiro para um explorador de animais, ele não é diferente daqueles que consomem “compassivamente” ovos de galinhas livres de gaiolas, carne de porco criado foras de grades, ou até mesmo daqueles que fazem a “segunda-feira sem carne; ou que trapaceiam e consomem alimentos de origem animal de vez em quando; ou que comem alimentos baseados em animais o tempo todo, mas apenas em pequenas quantidades:

“Os bem-estaristas afirmam que não tenho razão em dizer que o veganismo é uma questão de justiça ou um imperativo moral porque estou sendo injusto e não estou reconhecendo o veganismo como uma obrigação. Mas esse argumento não funciona. Não possui princípio limitativo e leva a uma conclusão aberta. Todo dinheiro é sujo. Então, mesmo que eu compre a minha comida em uma loja vegana, e não em um supermercado convencional, se essa loja emprega pessoas que não são veganas, ou se a loja vegana recebe produtos de pessoas que entregam produtos de origem animal para outras lojas; ou se os alimentos veganos vendidos na loja vegana são criados ou produzidos por fazendeiros ou produtores não veganos, ou se os fazendeiros veganos e os produtores veganos empregam trabalhadores não veganos, eu estou, seguindo o raciocínio dos bem-estaristas, apoiando a exploração. Portanto, os bem-estaristas estão comprometidos com a posição de que até que tenhamos um mundo vegano, não podemos ter a obrigação de nos tornarmos veganos, porque enquanto não tivermos um mundo vegano, não importa o que fizermos, estaremos dando dinheiro para exploradores de animais. Mas isso é claramente absurdo.”

Gary Francione afirma que a posição bem-estarista em relação ao veganismo não é diferente de dizer que não podemos promover a ideia de que o sexismo ou o racismo são injustos se patrocinarmos um negócio que é de propriedade de pessoas que são sexistas ou racistas, considerando que muitas empresas são de propriedade de corporações, e corporações são de propriedade de acionistas. Dado o nível de sexismo e racismo na população, isso significa, na sua concepção, que 99,9% do tempo, quando fazemos compras, estamos patrocinando um negócio que é de propriedade de racistas ou sexistas. Mesmo que esse negócio não seja de propriedade de racistas ou sexistas, existem racistas e sexistas que têm alguma conexão com o negócio para cujos bolsos nosso dinheiro está indo. Portanto, na perspectiva de Francione, o discurso dos bem-estaristas dá a entender que não podemos dizer que o sexismo ou racismo é injusto porque estamos sempre colocando dinheiro nos bolsos de racistas ou sexistas em algum ponto do caminho:

“Mas ninguém diria que não devemos falar sobre igualdade como um imperativo moral, porque ainda não alcançamos a igualdade. A maioria das pessoas veria o completo absurdo dessa posição. Mas ‘pessoas animais’ promovem essa posição absurda quando se trata de animais [não humanos]. E isso é muito especista.”

Gary Francione também declara que os bem-estaristas não raramente afirmam que não podemos ser ‘100% veganos’ porque há produtos de origem animal em plásticos, superfícies de estradas, pneus e muitas outras coisas com as quais não podemos evitar contato. Portanto, segundo eles, não podemos insistir no veganismo como um imperativo moral e como um princípio de justiça porque não há diferença entre uma pessoa que tem um celular feito de plástico e contém algum subproduto de origem animal, e uma pessoa que come um pouco de queijo, ou ovos de galinhas “criadas soltas”, ou caldo de galinha em uma sopa de legumes, etc.:

“Mais uma vez, esta posição é absurda. Primeiro de tudo, ser vegano significa não comer, vestir ou usar produtos de origem animal na medida do praticável – onde se tem uma escolha significativa. Podemos decidir o que comer e usar ou quais produtos usar. A justiça exige que não escolhamos coisas que contenham partes do corpo de pessoas exploradas – humanas e não humanas – sempre que tivermos uma escolha. Nós não temos escolha sobre o que foi colocado na superfície das estradas ou em plásticos, que são usados para quase tudo que existe. Em segundo lugar, a razão pela qual há subprodutos de origem animal em tudo é porque matamos mais de um trilhão de animais em todo o mundo anualmente. Os subprodutos de matadouros são baratos e prontamente disponíveis. E isso continuará enquanto continuarmos a consumir produtos de origem animal.”

Para Francione, é importante compreender que nunca aceitaríamos tal argumento se isso se aplicasse ao contexto humano. Essa transigência só existe porque falamos de seres de outras espécies, que são vulneráveis, e culturalmente e historicamente estão sob o jugo humano há muito tempo:

“Considere o seguinte: em uma sociedade racista e sexista, pessoas brancas e homens se beneficiam porque o racismo e o sexismo efetivamente transferem riquezas (dinheiro, oportunidades de trabalho, etc.) para longe de pessoas que são discriminadas e para aqueles que estão em classes ou grupos privilegiados. Se aplicássemos o argumento bem-estarista a esse contexto, teríamos que concluir que os brancos não podem argumentar que o racismo é injusto porque os brancos privilegiados não têm escolha a não ser se beneficiar do racismo (assim como os veganos não têm escolha senão usar os caminhos oferecidos). Teríamos que concluir que os homens se beneficiam do sexismo e da misoginia apenas em virtude de serem homens (assim como os veganos entram em contato com os plásticos que estão em tudo). Mas ninguém tomaria essa posição no contexto humano.”

Uma afirmação que Gary Francione classifica como uma das mais equivocadas dos bem-estaristas é a de que como não podemos evitar subprodutos de origem animal em tudo que nos rodeia, não podemos afirmar que é injusto escolher consumir esses produtos de origem animal quando “há uma escolha”. Sendo assim, ele defende que a posição bem-estarista é exatamente o mesmo que dizer que, porque as pessoas brancas se beneficiam do racismo, não há diferença entre a pessoa branca que se opõe ao racismo e a pessoa branca que se engaja em uma conduta menos racista.

“A posição bem-estarista é exatamente como dizer que, porque os homens se beneficiam do sexismo mesmo quando se opõem a ele, não há diferença entre o homem que se opõe ao sexismo e o homem que realmente agride as mulheres de vez em quando. Mais uma vez, ninguém tomaria essas posições no contexto humano. Devemos rejeitar a posição flagrante e bem-estarista do especismo por uma questão muito clara. Se você não é vegano, por favor, seja vegano. É uma questão de imperativo moral. É uma questão de justiça”, argumenta.

Referência

Francione, Gary. Veganism as a Matter of Justice: A Short Reply to the Welfarists. Ecorazzi (2 de abril de 2018)

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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