Jocs Silva, o professor que faz oposição ao consumo de animais desde os anos 1970

O choque foi grande. A partir daquele momento, interrompi o consumo de produtos animalizados (Foto: Divulgação)

O professor e cientista de dados gaúcho Jocs Silva se tornou vegetariano em 1977, depois de registrar e documentar a morte de mais de 200 mil bovinos. Mais tarde, se tornou vegano. À época, não era comum encontrar vegetarianos no Brasil, e menos ainda veganos, até porque praticamente ninguém sabia o que era veganismo no país. Mas, motivado pelo anseio em se aprofundar no assunto, Jocs teve o primeiro contato com o livro “Libertação Animal”, de Peter Singer, e a oportunidade de conversar várias vezes com o inglês Donald Watson, criador do termo “vegan” e fundador da The Vegan Society, que deu origem ao veganismo como conhecemos hoje. Com uma história de décadas fazendo oposição à exploração animal, inclusive ministrando palestras, Jocs Silva concedeu uma entrevista ao VEGAZETA relatando a sua trajetória. Confira:

Jocs, primeiro nos fale um pouquinho de onde você é e o que faz.

Sou natural daqui mesmo, Canoas [RS], ao lado de Porto Alegre. Graduei-me em Ciência da Computação e concluí a pós-graduação em educação. Atualmente sou professor de tecnologias computacionais e cientista de dados. Ensino humanos como melhor usar os computadores [programação] e ensino computadores a melhor atender os humanos [robot com inteligência artificial, por exemplo)]. Atuo na QI Faculdades e Escola Técnica como professor, e no Centro JOCS de Computação Avançada com projetos especiais para melhor introjetar inteligência em robot. No último dia 11 de março, comemorei 50 anos de docência tecnológica.

Me recordo de um depoimento seu no início de 2016. Se não estou enganado, o seu trabalho exigia que você viajasse por fazendas e matadouros, o que acabou o colocando frente a frente com a faceta mais dura da realidade da exploração animal. Como foi essa experiência que te levou a se opor ao consumo de animais e à objetificação animal. Isso foi em que ano?

No segundo semestre de 1977, eu exercia o cargo de analista de sistemas na Companhia de Processamento de Dados do Rio Grande do Sul (Procergs) e lecionava tecnologias computacionais em diversas outras instituições. Tirei férias de três meses, de modo forçado, e fui procurar uma atividade temporária. Acabei contratado por uma multinacional norte-americana da área de tecnologia para colaborar na configuração de um software destinado a automatizar linhas de produção de frigoríficos bovinos, ovinos e suínos. Na época, eu era um carnista desmedido e a proposta era irrecusável.

Fui pra Montana, nos Estados Unidos, conheci o software e voltei pro Brasil. Viajei pra Goiás com a missão de analisar detalhadamente os processos operacionais dos matadouros que haviam adquirido o software e que precisavam tê-lo reconfigurado pro ambiente brasileiro, inclusive nos itens pertinentes à legislação e regras de “abate humanitário”. Passei sete dias em cada unidade [eram três unidades], 24 horas por dia, registrando por meio de filme, fotografia e registro textual, todas as operações; e já recomendando como tais operações deveriam ser registradas ou digitalizadas com o software. Foram mais de 200 mil vidas que registrei e documentei os abates, com a devida embalagem para transportes até os pontos de venda.

O choque foi grande. A partir daquele momento, interrompi o consumo de produtos animalizados. Hoje, recordando, atribuo meu ingresso no vegetarianismo a duas constatações: a dor do animal preste a ser sacrificado e a falta de higiene do processo de produção da dita proteína animal – desde o desembarque do animal do caminhão boiadeiro até o envasamento de suas partes no embarque no caminhão frigorífico. Tudo acontece entre dor, sangue, fezes e pus. Rompi o contrato com os americanos, deixando de participar da segunda parte. Eu participaria da reconfiguração efetiva do aplicativo para que se adequasse ao processo brasileiro, em termos técnicos e de legislação legal. Renunciei a melhor parte financeira do serviço como um todo.

Como sua família e os amigos reagiram quando souberam que você não se alimentaria mais de animais?

Inicialmente, viram-me como um ‘molecão’, um adulto que já devia ter deixado as rebeldias de lado. Depois, quando já estava estudando o vegetarianismo, na busca de embasamentos científicos, passaram a respeitar a minha decisão, embora nunca tenham me imitado. Ainda hoje, depois de mais de quatro décadas, fazem comentários jocosos a respeito. Em especial, em terras gaúchas, onde o consumo de produtos animalizados é muito grande.

Como foi a sua transição do vegetarianismo para o veganismo?

A minha busca por conhecimento a respeito do vegetarianismo, jogou-me nos braços do veganismo. Foi inevitável. Ideias sobre respeito à vida animal, o significado do termo vida em sua essência, é o que nos faz evoluir em termos comportamentais e, garanto, em termos espirituais. A transição para o veganismo foi o entendimento gradual da similitude que temos com os animais: somos todos missionários por aqui. Podemos estar em diferentes estágios, mas com o mesmo objetivo: evoluir. Devo respeitar a missão deles como quero que respeitem a minha.

Qual era a reação dos profissionais de saúde quando você dizia que era vegetariano? Isso melhorou com o tempo?

A reação era de falsa gratidão, porque lhes presenteava com um diagnóstico pronto, sem eles fazerem esforço algum: “É isto aí, você precisa voltar a comer carne, ninguém vive sem carne.” Até hoje é assim. O que mudou é que hoje há profissionais de saúde veganos ou, pelo menos, conhecedores das evidências científicas e médicas que atestam a prescindibilidade dos produtos animalizados. São aqueles que se desamarraram da cultura e da tradição.

Naquela época, já se falava em veganismo no Brasil? Era fácil se alimentar sem consumir nada de origem animal, havia boa informação disponível?

Veganismo, no Brasil, é fruto da internet, da tecnologia da computação compartilhada em rede. Fomos presenteados pela internet. Antes conheci o veganismo lá fora, em países como Israel, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos. O veganismo que pratico sempre foi fácil de seguir porque me alimento de raízes, grãos, hortaliças, folhas. Quanto à informação disponível, era zero ou quase zero. Hoje, livros e textos via internet, tem até demais, obrigando-nos a trabalhar duro para separar o joio do trigo.

Quais foram os primeiros livros que você conheceu voltados ao vegetarianismo, direitos animais e veganismo? Tem alguém nesse meio que te inspirou ou que depois serviu como referência?

Os livros Libertação Animal”, de 1975, de Peter Singer; “The Case for Animal Rights”, de 1983, de Tom Regan; e “Introduction to Animal Rights (Your Child or the Dog?), de 2000, de Gary Francione. São livros que balizaram minha iniciação no mundo vegano. Além destes, tive a oportunidade de conversar várias vezes com o inglês Donald Watson no final do século passado e conhecer diversos trabalhos da [filósofa] Sônia T. Felipe e da Melanie Joy. Quem efetivamente me inspirou ou serviu de referência, obviamente, foi Donald Watson, um humilde inglês, mas muito firme em suas exposições e pontos de vista.

Você mantinha contato ou se correspondia com pessoas que partilhavam desse mesmo posicionamento?

Corresponder-se mesmo, só as visitas a Donald Watson. Atualmente, por meio do Facebook, tenho partilhado minha vivência “vegandeira” com centenas de pessoas. Uso muito a ironia e a poesia pra transmitir mensagens pró-veganismo. Estão disponíveis na página JocsVegan e em meu face.

Chegou a enfrentar algum tipo de preconceito ou a ser visto com algum tipo de estranhamento em algum momento?

Nas rodas familiares, sim, até há algum tempo. Mas nada que me tenha impactado.

Você conseguiu influenciar familiares e amigos a seguirem por esse caminho?

Mais amigos do que familiares, conforme o adágio popular “Santo de casa, em casa, quase não faz milagres”. Em especial, nas aulas que dou, alunos de cursos técnicos e de graduação, tenho conseguido “veganizar” mais.

Você acredita que o vegetarianismo e o veganismo no Brasil têm evoluído de forma satisfatória? Você crê na possibilidade de um futuro, um mundo vegano?

No Brasil, não, porque ainda estamos muito limitados ao ativismo voltado à tutela momentânea de animais, o que funciona como tentativa de secar gelo. O foco do veganismo sempre foi o humano. Sem reciclá-lo, pouco cresce o veganismo. “Veganizar-se” é resultado de foro íntimo, é decisão endógena (de dentro pra fora). De fora pra dentro, aproveita-se pouco, mas, em contrapartida, é de fora pra dentro que as ações mediáticas mais se propagam. Quanto ao auspicioso mundo vegano, no futuro, acredito mesmo, afinal sou um humano que há mais de meio século opera o processo ensino-aprendizagem. É a educação que transforma o mundo, não a revolução. Israel, Alemanha já exibem número de veganos e vegetarianos impensáveis há 30 anos. Entre jovens, o veganismo está crescendo muito mais rápido do que entre os ‘mais vividos’.

Como você definiria a sua relação com os animais no passado e como você a define hoje?

No passado, eu colaborava para tirar-lhes a vida; hoje, além de não mais patrocinar a pecuária, que lhes tortura e rouba a vida, esforço-me para ensinar meus contemporâneos a transformarem seus hábitos e comportamentos.

Como alguém que atravessou décadas sem se alimentar de animais, o que você destaca de mais marcante em relação ao vegetarianismo e o veganismo?

Veganismo requer autoconhecimento, tanto interior quanto exterior, isto inclui a serventia que se deve vivenciar. Somos todos missionários, humanos e não humanos, e não temos o direito de interromper ou dificultar o exercício da serventia alheia. A confirmação científica da senciência animal destruiu a última das trincheiras do egocentrismo humano. Agora é a hora da empatia e da compaixão. Eles são como a gente, porque sentem como a gente, e, em muitos casos, nos exibem até inteligência equivalente à nossa.

Jocs, sei que você já ministrou e ministra palestras também sobre vegetarianismo e veganismo. Essa iniciativa surgiu quando e como? Como são as suas palestras? O que você prioriza na sua abordagem.

Faço palestras em escolas, faculdades, empresas, associações comunitárias, igrejas e até em cursos de preparação de noivos – algumas igrejas ainda os mantêm. O enfoque que dou depende do público: na empresa, mostro o quão mais produtivo e rentável é um colaborador vegano; na igreja, mostro que o animal também é nosso próximo, por isso precisamos tutelá-lo e não explorá-lo; na escola, mostro que a escola precisa redimir-se, já que os saberes que fomenta só serão bem utilizados se ensinar o respeito à vida e à liberdade animal, e assim estou multiplicando os veganos, pelo menos no meu entorno.

Minhas palestras são sempre de 60 minutos, sendo 45 de exposição e 15 de perguntas e respostas. Muitas vezes, surgem perguntas relacionadas à minha predisposição em atuar mais de oito horas em sala de aula e outras tantas em reuniões, estudos e deslocamentos. Obviamente, minha prioridade é classificar o veganismo como ação ética e vegetarianismo como dieta. A partir daí, insisto muito em falar de direito animal e, claro, a incompatibilidade metabólica do humano com a dita “proteína animal”. Sempre testemunho minhas exposições com minha vivência vegana, altamente benéfica, tanto pra mim quanto pros nossos manos animais.

Saiba Mais

Jocs Silva nasceu em Canoas em 18 de maio de 1950.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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