Visto hoje por muitos como uma “invenção de nosso tempo”, e sendo explorado dessa forma por tantas marcas de leites vegetais, o leite de amêndoas já era consumido pela população de Bagdá, no Iraque, no século 10. Seu uso também permitiu a popularização de sobremesas sem nada de origem animal no mundo islâmico medieval e fora dele.
A primeira receita de leite de amêndoas foi publicada em Bagdá no século 10, no “Kitab al-Tabikh”, o primeiro livro de culinária árabe preservado – compilado pelo escritor Ibn Sayyār al-Warrāq. Portanto, isso indica que o leite de amêndoas pode não ter sido inventado no século 10, mas registrado nesse período, o que reforçaria ainda mais sua antiguidade.
No livro “Annals of the Caliph’s Kitchens”, a pesquisadora dra. Nawal Nasrallah explica que o leite de amêndoas era um exemplo de bebida saudável e terapêutica, sendo recomendado por um dos médicos mais renomados do mundo islâmico medieval, aI-Razi.
O persa Ibn Sina (Avicena), considerado um dos “pais da medicina moderna”, também recomendou o leite de amêndoas no livro “Al-qanun fi al-Tibb”, o “Cânone da Medicina”, descrevendo-o também como um alimento terapêutico por volta de 1020. Tanto ele quanto al-Razi notaram que o leite de origem animal causava desconforto em muitos pacientes, diferentemente do leite de amêndoas.
Portanto, eles anteciparam também uma questão de nosso tempo – a intolerância à lactose, que, em diferentes graus, afeta 86% da população global, segundo dados da revista científica Nature Reviews Gastroenterology & Hepatology (2017).
O historiador Ahmad Yusuf al-Hassan cita no livro “Technology and Nutrition in Islamic Cuisine” que, em alguns contextos, o leite de amêndoas era preparado para consumo com água de rosas, que, embora não fosse utilizada para esse fim, também incrementava a validade da bebida quando combinada com açúcar.
Os primeiros registros de sobremesas com o leite de amêndoas também são encontrados no “Kitab al-Tabikh” – como o mahallabiyya, um pudim de leite de amêndoas engrossado com farinha de arroz ou amido e aromatizado com água de rosas ou almíscar.
A sobremesa que surgiu na Pérsia, mas se popularizou e passou por uma transformação cultural no mundo árabe, é considerada um ancestral direto do atual muhallebi turco e do mahalabia árabe. Outra sobremesa citada na compilação de al-Warrāq é o fālūdhaj, um doce baseado em uma combinação de leite de amêndoas e farinha, semelhante à halva.
Também no “Kitab al-Tabikh”, de al-Warrāq, consta que o leite de sementes de melão já era consumido no século 10, sendo utilizado também em receitas doces e medicinais – fazendo parte especialmente da culinária abássida (séculos 8-13). Além de ser consumido como bebida, era usado em outros preparos livres de ingredientes de origem animal – como o sherbet medieval (um ancestral do sorvete moderno) e pudins.
No século 12, o leite de amêndoas foi introduzido na Europa por meio de Al-Andalus, região ibérica sob domínio islâmico na época e que correspondia às atuais Andaluzia e Valência (Espanha) e Algarve (Portugal). Os árabes não só popularizaram essa bebida, mas também a integraram tanto na culinária quanto na medicina, influenciando hábitos alimentares europeus.
A vantagem do leite de amêndoas, lembramos, estava também em sua durabilidade, já que, sem refrigeração, não estragava tão rápido quanto o leite de origem animal. Essa característica, somada à sua adequação aos períodos de jejum cristão – quando o consumo de laticínios era proibido -, acelerou sua popularização na Europa medieval.
Saiba Mais
Trecho adaptado da tradução de Nawal Nasrallah (Annals of the Caliphs’ Kitchens, p. 89) sobre o preparo do leite de amêndoas, conforme o “Kitab al-Tabikh”:
- Ingredientes:
- Amêndoas doces (lawz) descascadas.
- Água fria ou morna.
- Método:
- Descasque as amêndoas: Mergulhe-as em água quente para remover a pele, depois lave em água fria.
- Triture: Esmague as amêndoas em um pilão (ou moedor) até virar uma pasta fina.
- Misture com água: Adicione água gradualmente à pasta, amassando até obter um líquido leitoso.
- Coe: Passe a mistura por um pano fino para separar o líquido dos resíduos sólidos.
Processo de preparo do leite de sementes de melão, conforme tradução e adaptação do “Kitab al-Tabikh”:
- Seleção das sementes:
- As sementes eram retiradas de melões maduros, lavadas e secadas ao sol.
- Em algumas receitas, torravam-se levemente para realçar o sabor (como se faz hoje com sementes de abóbora).
- Moagem e mistura:
- As sementes secas eram moídas em um almofariz até virar uma pasta.
- Adicionava-se água fria (proporção um por quatro de sementes/água) e misturava-se bem.
- Filtragem:
- A mistura era coada em um pano fino para remover resíduos sólidos, resultando em um líquido esbranquiçado e leitoso.
- Opcionalmente, repetia-se o processo para maior suavidade.
- Uso culinário/medicinal:
- Bebida pura: adoçada e/ou servida gelada com neve (sherbet).
- Base para pratos: Usado em pudins (como o fālūdhaj) ou mingaus, substituindo leite animal.
Referências
IBN SAYYĀR AL-WARRĀQ. Kitab al-Tabikh (O Livro de Culinária). Século X.
NASRALLAH, Nawal. Annals of the Caliphs’ Kitchens. Brill, 2007.
INGRAM, C. J. E. et al. Global Lactase Persistence and Implications for Health. Nature Reviews Gastroenterology & Hepatology, v. 14, p. 68–75, 2017.
AL-HASSAN, Ahmad Yusuf. Technology and Nutrition in Islamic Cuisine. In: Studies in the History of Arabic Science, vol. 4, 2001.
IBN SINA (AVICENA). The Canon of Medicine (tradução para o inglês por Laleh Bakhtiar). Kazi Publications, 2012.
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