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A luta de um boi que não escapou do matadouro

Ainda tentava resistir, fazendo os cascos arranharem a rampa e arrancarem lascas

Foto: AE

Um dia antes de ser colocado no caminhão que o enviaria ao matadouro, um boi olhava além do curral de terminação e tentava encontrar um jeito de sair. Empurrou uma porção de arame esticado com o corpo. Depois recuou, correu e ameaçou pular. Desistiu, fazendo volteio difícil.

Olhava para o que existia fora daquele lugar, para outro lugar onde nunca pisou, que conheceu só pelo olhar. Mirava uma mata avizinhada e uma estrada paralela, desconhecida pelos cascos. Pessoas olhavam para ele ou para a mixórdia bovina, e logo já não olhavam, mesmo quando o boi ainda observava a partida.

Ele continuava ali, e muito continuava fora dali. Alguém disse que o boi pressentiu a morte. No dia seguinte, quando tentaram tirá-lo do lugar, um pedaço de terra pelada, preparando-o para a viagem ao matadouro, ele ainda resistia, tentando ganhar campo, outro campo, correndo de um lado para o outro enquanto o cercavam.

“Talvez esperasse que algo se abrisse e ele fugisse…”, alguém arriscou. “Quem sabe o que passa na cabeça de boi? A gente pode dizer que não, mas quem está na cabeça do boi?” Laçaram-no e arrastaram-no.

Com mugido roufenho, reagiu enquanto a corda era pressionada gerando dor, reafirmação de dominação. O boi recusava-se a andar, tentando enterrar os pés no chão, forçando-os para trás e para baixo, como forcado vivo – de pele, carne e osso. Deixou marcas no chão, de reprovação.

Forçaram-no a subir ofegante no caminhão, com corda e ferrão elétrico pra dar choque no lombo, que estremecia. Ainda tentava resistir, fazendo os cascos arranharem a rampa e arrancarem lascas. Sangue gotejava e escorria devagar.

Julgaram que não era boa ideia levá-lo assim, mas resistiram para mostrar ao boi quem mandava, e se não o levassem a preocupação era de que o boi entendesse que tinha prevalecido – o que não seria admitido.

A resistência não evitou seu fim, mas o fim do boi não foi o fim planejado. Na chegada ao matadouro, vida já não havia, só um corpo, deixado por um boi judiado e desesperado. “O que resta ao boi a não ser deixar o corpo antes da hora?”

Leia também “O homem que desistiu de matar boi“, “Um novilho escapou do matadouro, mas não sabia para onde ir” e “O boi não é mais do que o interesse humano?

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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