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Não somos carnívoros

De vez em quando me deparo com alguma matéria em que se faz referência aos consumidores de carne como carnívoros. Carnívoro é um termo que faz pensar no ser humano como alguém que come carne por necessidade, que não pode prescindir dela. Mas se a carne não é essencial ao ser humano, já que podemos viver muito bem e até melhor sem ela, é coerente a afirmação de que ele é carnívoro?

A afirmação do ser humano como carnívoro, mesmo quando se busca atribuir um mero sentido de consumidor de carne, não deixa de promover uma ideia de se pensar a carne como se o ser humano tivesse com ela uma relação essencial, se ser carnívoro associa-se à necessidade.

A inspiração para tal afirmação vem de animais realmente carnívoros, que têm uma relação de dependência e sobrevivência com o ato de comer carne, diferentemente do ser humano, para quem a carne não é vital.

Humanos que exaltam seu consumo de carne e o defendem tendem a dizer que são carnívoros. Eles não veem em termos como “consumidor de carne” ou “comedor de carne” a força do termo “carnívoro”. Esse uso busca uma afirmação de uma identificação que não existe em um sentido biológico.

Ainda assim é perceptível essa defesa que costuma trazer verdadeiros animais carnívoros como exemplos, como se o ser humano estivesse junto deles, ainda que não seja, de fato, carnívoro, mas apenas consumidor de carne.

Há humanos que até se comparam aos leões, como se isso pudesse fazer sentido, assim ignorando não apenas a questão inerentemente biológica como também contextual, já que humanos podem optar por não comer carne.

Ademais, sabemos que os verdadeiros carnívoros comem a carne como é. Não precisam recorrer ao fogo, à tecnologia e ao que não é de origem animal para torná-la comível, palatável.

Se refletirmos sobre o consumo humano de carne, podemos compreender que estamos bem distantes dos verdadeiros carnívoros. É perceptível que tais comparações surgem também simbolicamente com o intuito de tentar inferiorizar aqueles que não comem carne, baseando-se na crença de que os animais carnívoros estão no topo.

Esse é mais um equívoco, já que o elefante, um animal herbívoro, é considerado o animal mais forte da natureza terrestre. Mas sequer precisamos olhar para outros animais ao ponderarmos que a superação dessa crença está ainda mais presente na realidade atual, no crescente número de pessoas abdicando do consumo de carne.

Afinal, como sustentar a crença do ser humano como carnívoro quando o viver de tantos humanos são a prova de sua ilógica? Claro que antes mesmo da era comum, do surgimento do cristianismo, já tínhamos humanos na contramão dessa crença, mas hoje isso é muito mais visibilizado e mais antagonizado.

Enfim, o termo carnívoro como sinônimo de consumidor de carne é uma apropriação do sentido de carnívoro para caber em uma lógica não apenas de consumo de carne, mas de defesa do consumo de carne – porque há um enaltecimento.

Mas pode o enaltecimento se sustentar a partir da afirmação de necessidade quando comer carne não é biologicamente uma necessidade? Ainda que isso continue ocorrendo, não pode impedir uma mudança em andamento.

Leia também “Para Rousseau, humanos não deveriam comer carne“, “Thoreau: “É parte do destino da raça humana deixar de comer animais” e “Voltaire: “Há algo mais abominável do que alimentar-se de cadáveres?

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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