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No século 19, russo escreveu uma história de luta pela libertação animal

“A Revolta dos Bichos” foi publicada décadas após a morte de Mykola Kostomárov

Por volta de 1879-1880, o historiador russo Mykola Kostomárov (1817-1885) escreveu um conto publicado este ano no Brasil como “A Revolta dos Bichos”, que é uma história de luta pela libertação animal. Na Rússia, o conto só foi publicado em 1917, décadas após a morte de Kostomárov. Acredita-se que o final da história pode não ser realmente um fim, que o autor tenha deixado a obra inacabada.

Hoje há muitas interpretações sobre o conto que tem um fim fatalista, e que envolvem direitos animais e exploração camponesa na Rússia czarista, permitindo pensar tanto a exploração animal não humana quanto humana. Além disso, o conto de Kostomárov precede “A Revolução dos Bichos” (1945), de George Orwell, e “Revolta” (1924), de Władysław Reymont, que também têm como cenário uma fazenda onde ocorre uma revolta animal. As três histórias permitem um paralelo entre não humano e humano no que diz respeito à exploração e ao autoritarismo.

Em “A Revolta dos Bichos”, conhecemos Omelko, trabalhador de uma fazenda que, mesmo a serviço da opressão dos animais em benefício principalmente do patrão, rejeita a conclusão de que as capacidades intelectuais dos animais não humanos estão abaixo dos humanos. Assim é estabelecido também que é o humano (Omelko) mais próximo desses animais que, mesmo reproduzindo um interesse dominante, tem mais condições de percebê-los como indivíduos; e porque ele próprio também na reprodução de valores dominantes não deixa de ser um indivíduo dominado. Afinal, a proximidade dele com esses animais baseia-se também no seu lugar laboral e social.

“Ele afirma que os animais demonstram uma inteligência igualável à humana e, às vezes, até mesmo superior” (2024, p. 15), narra o patrão, que nessa observação reproduz uma observação fora da esfera dominante. Mas, considerando o contexto de Omelko, por contradição, em vez de reconhecer nisso algo que o leve a um olhar antagônico à exploração animal, ele expressa tal inconsideração por meio da crença de que a inteligência dos animais também é benéfica à instrumentalização animal – um olhar viciado pela imersão na normalização da opressão.

No entanto Kostomárov desafia também o reducionismo de Omelko ao permitir que os animais não dependam de um reconhecimento humano para se insurgirem contra a exploração. Logo a inteligência e o poder de comunicação também interespécies, já que é na exploração que os animais reconhecem mais semelhanças do que diferenças, passam a ser usados depois para estabelecer uma revolta.

“Segundo Omelko, os primeiros sintomas desse movimento começaram a aparecer entre os bois que, desde tempos imemoriais, têm se caracterizado, em toda parte, por uma tendência à obstinação, razão pela qual somos frequentemente forçados a recorrer a medidas rigorosas, por vezes cruéis, para controlá-los” (2024, p. 16).

Na passagem acima, o proprietário da fazenda admite que o animal mesmo criado para ser explorado não pode ser totalmente controlado. Isso é previsível porque nenhum animal deixa de se reconhecer como fim em si mesmo para ser um fim em outros, ainda que seja subjugado para tal fim. O animal nunca é mera extensão da vontade humana, porque isso só seria possível se o animal fosse totalmente esvaziado e privado de si, o que não é possível enquanto ele vive.

Situando-se entre o oprimido e o opressor, Omelko, que faz as vezes dos dois, chega a evitar que um touro seja morto por “mau comportamento”. Assim ele transita por interesses de duas realidades. A justificativa usada por ele, e que não poderia não ser baseada na instrumentalização, é que “o touro tinha virtudes tão grandes e inerentes à sua natureza bovina que sua perda não seria facilmente substituída por algum outro novilho” (2024, p. 16). Esse relato ficcional ainda dialoga com a realidade atual, já que não é incomum animais no contexto da pecuária serem mortos por “mau comportamento”, e principalmente quando resulta em despesas relacionadas a “mais cuidados”. Assim a morte antecipada é uma “consideração econômica”, mas não somente isso.

O comportamento do touro em “A Revolta dos Bichos” passa a ser percebido depois como uma desobediência que levará a uma rebelião, porque ele tem condições de contagiar outros animais. Essa observação na ficção também é carregada de cruel realidade, porque há animais que, quando não isolados, são mortos para que “seu comportamento não seja seguido ou imitado por outros”.

A percepção de que o touro trará “confusão” parte de Omelko, que prefere defender o lugar de opressão com o qual está acostumado e que garante seu salário. Omelko é simbólico de todos que reconhecem características e capacidades nos animais que deveriam ser usadas para livrá-los da exploração, mas não é o que ocorre, porque não estão dispostos à rejeição do que é culturalmente dominante, ou não se veem em condições de fazê-lo.

Também é no comportamento dos bovinos que Kostomárov busca referência para o interesse deles na libertação animal quando Omelko, que diz que os “animais se agitam apenas pelo prazer de se agitar”, mais tarde é surpreendido por uma articulação coletiva interespécies que refuta o vazio conclusivo da “ação despropositada”.

O que assegura também que Omelko não colocará o interesse dos oprimidos sobre o dos opressores é sua promoção a administrador-chefe da seção pecuária. Ainda assim, a ele o patrão atribui a culpa pela insurgência não humana – por não ter agido “com os mais severos meios para erradicar o mal pela raiz” (2024, p. 18). Porém é desse subalterno, apto a criar uma ponte entre humano-não humano, por ter um entendimento sobre a natureza não humana que ele não tem, que o patrão passa a depender para “devidamente colocá-los em seus lugares” – que não são mais do que um espaço de imposições e privações de interesses. Também é por isso que o patrão, embora seja o próprio narrador, tem uma posição por vezes passiva em relação a Omelko. Logo o dominante depende do dominado (humano) para prevalecer sobre outros dominados (não humanos).

Em relação à insurgência, o uso do termo “mal” em relação com a revolta animal no discurso patronal só tem essa aplicação, e decorrente de uma apropriação antropocêntrica, se pensado o interesse humano, porque na consideração do interesse não humano estamos diante de um bem, que é não admitir mais a exploração.

Na história, Kostomárov não vale-se diretamente do antropomorfismo para dar voz aos explorados, mas de um excepcionalismo, da compreensão da língua não humana, a partir de Omelko, em termos humanos:

“Aproveitando-se da superioridade de seu intelecto sobre o nosso, o covarde tirano nos escravizou como imbecis, a ponto de perdermos a dignidade dos seres vivos e nos tornarmos instrumentos desprovidos de pensamento para a satisfação de seus caprichos. Ordenham nossas mães e esposas, privando nossos bezerrinhos de leite. E o que não fazem com o leite de nossas vacas! Só que esse leite é propriedade nossa, não dos humanos! Que ordenhassem as suas próprias mulheres […]” (2024, p. 18).

O discurso do touro inclui também a reprovação do abate de bezerros e a exploração de animais como mão de obra, como no preparo do solo. “Mas deixe que um irmão chifrudo ouse ir ao campo, arado com seu próprio trabalho, para saborear esse delicioso capim branco! Ele imediatamente será expulso às chicotadas, ou mesmo a pauladas! A verdade é: a grama naquele campo é nossa propriedade, e não do humano, pois foram os nossos irmãos quem araram e abriram a terra; sem isso, esse capim jamais teria dado assim no campo” (2024, p. 19).

A passagem acima traz uma interpretação dual, que pode ser pensada tanto sobre a realidade não humana quanto humana, além de trazer uma referência ao conceito de mais-valia, já que “o resultado do trabalho não será de usufruto dos que mais trabalham”. Se refletimos sobre essa realidade não humana, que traz uma literalidade, é perceptível a referência ao que é comum ainda hoje sobre tal realidade exploratória, que é dar ao animal somente o que é favorável aos interesses de quem exerce domínio sobre ele. Logo abaixo há outra referência ao que corresponder a um interesse não humano depende primeiro de corresponder a um interesse com fim no ser humano:

“O tirano o alimentou durante todo o verão, e nossos irmãos puderam realmente pastar pela estepe no mais pleno gozo: sem trabalho, sem exaustão… mas para que tudo isso? […] Bem, aqui está a razão: perguntem a qualquer um para onde o rebanho está sendo levado e descobrirão que o malvado fazendeiro vendeu seu rebanho para um outro malfeitor da espécie humana, que o está levando para os grandes currais humanos que chamam de cidades. Assim que chegar lá, o pobre gado será mandado diretamente para o matadouro, e ali os bois mais velhos sofrerão o mesmo destino dos jovens bezerros, ou um ainda mais doloroso” (2024, p. 20).

A realidade dos equinos como meio de transporte ou de carga também é condenada pelos próprios animais, assim como o seu uso em guerras e outros confrontos. Isso reflete o mal da arbitrariedade que não permite escolha aos animais. Também serve para pensar toda imposição beligerante, incluindo a obrigatoriedade humana de tomar parte na guerra sem que seja um interesse de quem dela participa diretamente:

“Montam em nossos irmãos e nos jogam uns contra os outros! Na intenção de se matarem uns aos outros, acabam matando a nós! Seus duros e impiedosos corações não têm qualquer compaixão conosco! Quanto sangue equino já foi derramado! Que horrendos espetáculos! Um infeliz cavalo, já sem uma das pernas, corre atrás dos outros sangrando até perder todos os sentidos e cair; outro rasteja, amputadas duas pernas de uma vez, e em vão tenta equilibrar-se sobre as patas que restam; um terceiro ainda é perfurado no peito, e cai deitado desejando a morte, o quarto tem os olhos arrancados, o quinto a cabeça decepada… Pilhas de cadáveres equinos se somam às pilhas de cadáveres humanos! “E por que isso? Saberíamos nós, pobres coitados, o porquê de eles brigarem entre si? Isso é problema deles, não nosso” (2024, p. 25).

Kostomárov também traz considerações para refletir sobre o uso pejorativo de termos animais em referências aos humanos, como quando os porcos discutem as razões para uma união interespécies pelo fim da exploração animal: “Um porco gordo grunhiu sobre os insultos que o homem inflige à raça suína, chamando de porco aquilo que considera sujo” (2024, p. 29), e que não condiz com a realidade, mas tem tal utilização pelo que é conveniente ao ser humano nessa depreciação.

Cabras, cavalos e ovelhas também participam da revolta, e todos os tipos de exploração são condenados. “A Revolta dos Bichos” chama atenção também para o fato de que, mais cedo ou mais tarde, todo animal que já não é considerado útil vivo é morto, evocando assim o comum extremo dos desvalores, a falta de consideração do valor da vida ao próprio ser.

No conto a revolta é contida pelo engodo humano, que explora o fatalismo e a ratificação de que na ausência de uma verdadeira consideração os animais, ou dominados, não podem prevalecer, mesmo que tenham vontade para tal. Omelko começa a convencer os animais, também por meio de suas violentas ações, de que eles terão um fim trágico se não concordarem com um conveniente reformismo, e que se desistirem da revolta serão bem alimentados e “mais bem tratados”.

Exatamente aquele que reconhece nos animais o que outros não reconhecem é instrumentalizado para que os outros também continuem sendo instrumentalizados, assim sendo um mediador das “conveniências humanas e dominantes”. Mas a diferença é que a instrumentalização dos não humanos sempre culminará, mais cedo ou mais tarde, na morte determinada pelo interesse humano.

Há quem possa ver na obra um viés pessimista, outros, realista, mas que por isso também pode ter um impacto maior em consequência do incômodo gerado. Alguns animais do conto acreditam que, apesar de tudo, há uma mudança em andamento e que, se não livrará todos dos males da exploração, pelo menos permitirá que nem todos sejam mortos – a partir de uma promessa (pouco credível) de que a maioria não será eventualmente enviada para o matadouro. Ainda assim persiste uma crença na continuidade, e porque eles não podem prevalecer sem que haja uma mudança de consciência que não dependa somente deles enquanto o ardil humano em relação a eles for imperante:

“Por fim, como previra Omelko, os bichos mais obstinados e teimosos vagaram pelos campos até o fim do outono, quando não havia mais raízes e começou a cair a neve. No outono passado, creio que por aí também, a neve veio antes do que de costume. Os animais, então, vendo que já não havia mais comida nos campos, ficaram sóbrios das ilusões da vã esperança da liberdade e, voluntariamente, começaram a voltar para seus currais. Voltaram, também de cabeça baixa, os principais agitadores: o touro que levantara o gado e o alazão, que agitara a revolta entre os cavalos. Ambos tiveram uma punição cruel: ao touro, seguindo a sentença proferida por Omelko e confirmada por mim, foi aplicada a pena capital por espancamento a pauladas, enquanto o garanhão foi privado de suas capacidades de procriar e amarrado numa carroça para transportar cargas pesadas. Os outros, segundo a investigação justa e imparcial conduzida por Omelko, foram punidos de acordo com o grau de seu envolvimento” (2024, p. 42).

Podemos concluir que Omelko, sentindo-se importante pela posição que lhe foi concedida, mais do que nunca permitiu que sua percepção dos animais fosse preterida por interesses dominantes, tornando-se ele próprio, nesse momento, uma expressão maior de violência com sentido contraditório de justiça. A conclusão, claro, também pode ser pensada em relação à exploração humana.

O  final de “A Revolta dos Bichos” continua discutível pelas incertezas de ser ou não uma obra inacabada, o que não é tão incomum na literatura russa.

Também é válido lembrar que Mykola Kostomárov destacou-se como historiador ao pesquisar a história da Rússia a partir das classes não privilegiadas.

Referência

KOSTOMÁROV, M. A Revolta dos Bichos. 1. ed. São Paulo: Ercolano, 2024. 76 p.

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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