Relatório denuncia pecuária como líder da escravidão moderna no Brasil

“A pecuária no Brasil tem uma longa história de abusos trabalhistas e é responsável pela maior proporção de casos de trabalho análogo ao escravo no país”

Um relatório de 44 páginas publicado pela ONG Environmental Justice Foundation (EJF) denuncia a pecuária como líder da escravidão moderna no Brasil. Segundo o relatório, o governo brasileiro adotou as primeiras sérias medidas contra o trabalho análogo ao escravo nos anos 1990, mas décadas depois a situação ainda é preocupante no país.

“A pecuária no Brasil tem uma longa história de abusos trabalhistas e é responsável pela maior proporção de casos de trabalho análogo ao escravo no país.” O relatório ainda traz uma associação entre formas de abuso, ao pontuar que a pecuária também lidera o desmatamento no Brasil – gerando uma intersecção entre exploração humana e impacto ambiental.

Segundo a publicação, “as fazendas de gado associadas ao trabalho escravo tendem a exibir níveis de desmatamento mais altos do que a média, com o desmatamento frequentemente realizado ilegalmente”.

Esse problema não pode ser pensado somente nacionalmente, segundo o relatório, porque a pecuária tem grande alcance internacional, sendo impulsionada também pela demanda internacional, com algumas empresas transnacionais controlando parte significativa do mercado.

A publicação aponta que há prevalência de trabalho análogo ao escravo em um bioma brasileiro que recebe pouca atenção internacional, que é o Pantanal, uma das maiores áreas úmidas do mundo e que tem um ecossistema de significância global para a biodiversidade e regulação climática.

“A intensificação contínua da pecuária é uma das principais ameaças à biodiversidade dentro do bioma: apesar de seu alto valor ecológico, a maior parte do Pantanal é desprotegida e mantida como terras privadas, compreendendo 93% das terras do lado brasileiro, das quais 80% são usadas para pecuária”, denuncia o relatório da EJF.

Os dados que revelam que só a pecuária foi responsável por 46% do trabalho análogo ao escravo no Brasil entre 1995 até a atualidade é baseado em uma estimativa da Comissão Pastoral da Terra (CPT) com base em dados fornecidos pelo governo federal, por meio da “Lista Suja” do Ministério do Trabalho e Emprego.

Só de 1995 a 2022, 17.444 trabalhadores foram resgatados de trabalho análogo ao escravo na pecuária, representando 29% do total de trabalhadores resgatados em todos os setores. “Condições de trabalho degradantes e servidão por dívida são particularmente prevalentes, identificadas em 75% dos casos de trabalho escravo em fazendas de gado analisadas em um estudo recente.”

O que torna a situação mais preocupante, conforme o relatório, é que casos de escravidão moderna detectados por meio de inspeções governamentais provavelmente representam apenas uma fração do total de casos de trabalho análogo ao escravo.

Na pecuária, já foi registrado um período de queda, mas acredita-se que isso não tem nada a ver com a queda desse abuso e sim com a redução da fiscalização, que já é bastante limitada e faz parecer que os números são menores do que realmente são.

“O nível de esforços na fiscalização tem uma influência crucial nas taxas de detecção de trabalho análogo ao escravo: a análise de regressão mostra uma forte relação entre o número de estabelecimentos inspecionados e o número de casos detectados.”

No relatório também é apontada uma relação entre a negligência ambiental e a facilidade com que o trabalho análogo ao escravo pode ser praticado no Pantanal, já que é uma área de pouca fiscalização. Não por acaso, somente 5% da área é protegida, deixando a maior parte vulnerável ao desmatamento promovido pelo agronegócio, principalmente na forma da agropecuária, que tem sido associada às violações de direitos humanos.

O Pantanal, conforme a publicação, já foi uma área de pecuária de subsistência para comunidades locais, mas hoje os antigos métodos tradicionais dos pantaneiros já perderam lugar para a preponderância das técnicas intensivas do agronegócio – que geram um grande impacto ambiental para satisfazer a demanda por mais carne e por carne mais barata – o que favorece também práticas de exploração humana.

Segundo a lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN em inglês), há 177 espécies ameaçadas no Pantanal – o que também está relacionado a esse impacto gerado pela pecuária.

Informações do relatório reforçam que o Pantanal enfrenta inúmeras ameaças, incluindo a conversão de vegetação natural em pasto, erosão e escoamento de agroquímicos em cursos de água, projetos de usinas hidrelétricas resultando em desvio e degradação de cursos de água, mineração e a destruição de habitats por meio de incêndios.

Entre 2019 e 2022, uma área do tamanho de Barcelona foi desmatada no Pantanal, com registros mostrando a maior média de área por alerta de desmatamento de todos os biomas do Brasil. O desmatamento ilegal mais que dobrou nos primeiros seis meses de 2020, que também foi um ano recorde para incêndios.

“Aproximadamente um terço do bioma queimou, matando mais de 17 milhões de vertebrados selvagens e emitindo mais do que as emissões de CO2 da Bélgica no mesmo ano. Estimulados pela seca e ventos fortes, muitos desses incêndios foram iniciados por criadores de gado para limpar mais terras para pastagens.”

Nessa mesma região, somente de 1995 a 2022, pelo menos 9.270 trabalhadores foram resgatados de situação de trabalho análogo ao escravo na pecuária, representando 24% do total da escravidão moderna em todos os setores.

O Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, dois dos maiores estados pecuaristas do Brasil, com o Mato Grosso ocupando o primeiro lugar, tiveram 31 proprietários de 37 fazendas de gado com seus nomes incluídos na “Lista Suja” do Ministério do Trabalho. Somente na Fazenda Marabá, 17 trabalhadores foram resgatados em uma única operação.

Em uma propriedade, a Fazenda Baía do Cambará Redondo, quatro trabalhadores foram resgatados – incluindo um que trabalhava na propriedade há 20 anos. Eles nunca tinham recebido salário e eram forçados a beber água suja de córregos e reservatórios que também eram utilizados para banho.

Em um dos depoimentos recolhidos pela EJF, um trabalhador mostrou que vivia em um barraco improvisado, de lona, junto com outros trabalhadores (fotos no início). Eles não tinham acesso a instalações sanitárias nem recebiam comida adequada. Sequer tinham como manter a comida conservada.

Segundo os trabalhadores, os proprietários das fazendas obtinham aviso prévio das inspeções governamentais, permitindo que os mandassem para longe das propriedades antes da inspeção – assim evitando punição. “Os sobreviventes relataram que esses tipos de condições de trabalho são característicos de muitas fazendas na região.”

O relatório denuncia que as maiores indústrias de carne compravam animais dessas fazendas. Também faz uma observação de que as denúncias apresentadas representam apenas uma fração dos abusos que ocorrem na pecuária, além de chamar atenção para o fato de que a escravidão moderna tem sido usada também para reduzir custos nas cadeias de produção de carne, já que há pecuaristas que exploram trabalhadores para reduzir despesas e oferecer animais a preços que são mais vantajosos tanto para eles quanto para a indústria da carne.

“Devido às baixas taxas de inspeção, a prevalência de trabalho escravo provavelmente é significativamente maior do que os números oficiais sugerem. Os dados disponíveis são, no entanto, indicativos de abuso generalizado e sistêmico […]”, consta na publicação.

Clique aqui para ter acesso ao relatório “Slave labour in the Brazilian cattle ranching industry“.

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Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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