Pode haver beleza na crueldade animal?

Documentário “The Matador” serve para refletir sobre como a romantização da tourada pode ser questionada a partir da crueldade da prática

“The Matador”, de Stephen Higgins, é um documentário sobre a trajetória do toureiro espanhol David Fandila, mais conhecido como El Fandi. A obra também serve para refletir sobre como a romantização da tourada pode ser questionada a partir da crueldade da prática.

O toureiro, como afirma um entrevistado, é um herói que encara a morte. Porém em que subsiste o heroísmo se é o próprio toureiro que se sujeita a um risco desnecessário e contra um animal que apenas reage à ameaça? Como é perceptível também no filme.

Em comum, as cenas mostram, mais cedo ou mais tarde, um touro cansado, ofegante, com a língua de fora e sangrando, o que entra em conflito com os discursos que surgem no decorrer do filme, como a defesa de que a tourada é expressão artística, poética, e, portanto, bela.

El Fandi diz que desde criança “os touros o fascinam”, que cada touro tem uma expressão diferente, e não somente isso – que cada um é completamente diferente do outro, o que evoca a individualidade de cada animal.

Mas admitir isso não o leva a reconhecer o animal como indivíduo que não deve ser submetido à tourada, e sim ganha um sentido de que ele pode ter um “confronto diferente com cada animal com base nessas diferenças”. Ou seja, o lugar moral que ele nega aos touros, ele o faz porque a avaliação das características dos touros não desloca-se do fim deles na tourada.

Quando ele diz que “o touro tem que inspirá-lo de alguma forma”, ele vincula o viver do touro como indissociável do seu próprio interesse, e um interesse que não é o interesse do touro. O editor Luis Agusti diz em uma cena que “não deixa de ser uma brutalidade quando se assiste de perto a tourada e a vê pelo lado do animal”.

Uma realidade tão repetível e exibida no filme que evoca bem essa afirmação é a do corpo morto de um touro arrastado pela arena enquanto o público aplaude. Para o toureiro, é preciso entender a tourada para que deixe de ser vista como moralmente condenável e arcaica. Por outro lado, por que mudar essa percepção, se é a percepção que considera o impacto da experiência para o animal não humano?

Um dos momentos mais debatíveis do filme surge quando El Fandi é questionado sobre o impacto de se deparar com protestos contra a tourada. Para ele, isso pode funcionar como uma “distração”, porque pode interferir na sua relação com a tourada. “Tal distração pode ser devastadora”, admite. Logo, mesmo nessa prática, não há uma negação dele de que há legitimidade em reprová-la.

A banalização da vida do touro também é exposta em “The Matador” quando se define como um “auge” durante a tourada o ato de enterrar a espada no touro – “um golpe limpo”. O que é visto como beleza nesse ato é uma experiência excruciante para o animal.

Outro momento que externa a contradição da tourada surge quando El Fandi diz que se o touro é corajoso há casos em que ele recebe “o ponto de bravura”, “ganhando o perdão e a vida”. Mas por que tal animal precisa do perdão humano? Essa é uma ação em que um direito fundamental, de não ser morto, é promovida por excepcionalismo como “ato de bondade”. Ou seja, o animal não pode ter direito à própria vida. Ela deve ser baseada em seu desempenho.

“Quando vemos um desses touros livres no campo, não consigo explicar essa sensação de paz interior que eles têm, uma tranquilidade.” Essa é uma frase de El Fandi que parece externar sua dificuldade em compreender a natureza desses animais pelo que precede o condicionamento e a subjugação. Também porque há uma contradição entre o que ele observa e vive.

Há uma cena em que a mãe de El Fandi diz que durante a tourada todos na arena estão em perigo, mas nessa afirmação não há um reconhecimento de que o touro também está em perigo, e um perigo que o touro não corre de forma voluntária.

Mas o toureiro faz uma observação a ser considerada. Ele diz que no Natal perus são esquartejados e depois comidos. A referência é de que não há uma reprovação dessa prática, enquanto que em relação às touradas, que também resultarão na venda da carne do animal morto, a perspectiva pode ser bem diferente. Ademais, se a carne é vendida e consumida, mesmo quem a compra, se desgosta das touradas, também participa de sua prática.

O que também coloca em xeque a chamada “bravura” dos toureiros, como mostra o documentário, é que eles tentam matar rapidamente um touro quando percebem que não poderão “triunfar”, como ocorre com El Fandi em Lima, no Peru. “Você nunca tem a segurança de estar no controle, o risco sempre está presente”, diz. Isso é esperado, já que o touro é um animal que tenta prevalecer pela sua autopreservação.

No fim do documentário, observamos a queda triste de um touro, os aplausos do público e toureiros segurando orelhas e rabos como troféus. Isso remete a um reconhecimento feito pelo escritor Eduardo Lago, de que a tourada está à margem da racionalidade, da modernidade e de valores atuais.

“Eu acho que às vezes temos que acabar com as tradições. Vivemos em um mundo em que, talvez, se dê importância excessiva às tradições. O mundo das touradas está condenado a morrer”, diz a escritora Elvira Lindo em “The Matador”.

O filme está disponível no Mubi.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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