No filme “American Honey”, de Andrea Arnold, Star (Sasha Lane) pega carona com um caminhoneiro para quem ela tenta vender assinaturas anuais de revistas, já que é o seu meio de sobrevivência. Ele é realmente gentil com Star, diz que seu sonho é ver o oceano e pergunta qual é o sonho dela, algo que ninguém nunca perguntou.
Quando desce do caminhão, depois de vender as assinaturas, ela vê que ele transporta bovinos para o matadouro, algo que não tinha percebido antes, provavelmente porque estava com a atenção voltada para o seu objetivo.
Star fica surpresa, troca um olhar com um dos animais que coloca as narinas para fora do caminhão. É a única parte do corpo que pode ter um contato com o que está fora. O animal é pacífico e tudo ali evoca seu estado de prisão, ou seja, a impossibilidade para o animal.
Ele logo morrerá, assim como os outros que estão lá, mas que ela não vê, apenas ouve. É o encontro com aquela face bovina e que ela sabe para onde irá que estabelece um conflito entre o que ela vivenciou na cabine e o que aqueles animais estão vivendo.
Star vê inúmeras fotos da família do caminhoneiro que remetem a bons momentos. É um homem bastante ligado à família. Ele fala do casamento da filha, que agora tem outra vida. Para os animais na carroceria, família é uma impossibilidade determinada pelo interesse em explorá-los e matá-los. Não é permitido que vivam para os seus próprios interesses.
Nessa cena, Andrea Arnold mostra como o poder de uma cultura dominante pode fazer com que humanos gentis com outros humanos aceitem e participem da violência contra os animais. Há uma constante mensagem de que “está tudo bem, já que as pessoas se alimentam desses animais”.
Lá fora, ao lado do caminhão, a expressão de Star diante do animal é de pesar, sem que ela precise falar. Star parece nunca ter passado por tal experiência, não de forma tão próxima e tão confrontadora. Ela olha novamente para a cabine do caminhão, continua parada e acompanha o veículo se distanciar.
Seria equivocado reduzir esse exemplo a uma conclusão de que se o homem transporta animais para o matadouro é porque ele é uma má pessoa. Isso ignora a naturalização decorrente da cultura e que é a mesma que leva humanos gentis com outros humanos a não verem nada de errado em participar disso.
Há uma barreira normalizada pelo especismo (que exclui outras espécies de uma consideração de interesses), que opera nessa contradição de ser empático com outros humanos e não com animais escolhidos como fins no consumo humano. Crescemos acreditando que há animais que podem e devem viver como “finalidades humanas”.
Andrea Arnold explora isso com brevidade e ao mesmo tempo profundidade, realçando a complexidade desse tipo de realidade. Não estamos diante de uma pessoa ruim, mas de alguém que personifica uma contradição tão comum e que sua potência está exatamente no poder da cultura dominante.
Esse é um exemplo que serve para pensar que a mudança não pode ocorrer na demonização do indivíduo, mas na atenção à imersão cultural que tem sua perpetuação condicionada ao seu constante estado de normalização. Ampliar o círculo de empatia, não o limitando ao ser humano, depende de estímulos para romper com a aceitação dessa cultura.
É provável que a cena de “American Honey” tenha passado despercebida por muitos, mas ela já evidencia uma preocupação de Andrea Arnold com a exploração animal e que ganharia protagonismo no documentário “Cow”, de 2021.
No filme, sobre o qual já publicamos na Vegazeta, conhecemos a história e o fim de Luma, uma vaca submetida à produção leiteira que tem o “direito de existir condicionado à sua utilidade” – algo tão comum em relação a esses animais.
Já em “Fish Tank”, outro filme de Andrea Arnold, lançado em 2009, há duas cenas em que a protagonista Mia (Katie Jarvis) tenta libertar uma égua que é mantida o tempo todo acorrentada. Em “Red Road”, de 2006, o incômodo pode surgir pela condição de obesidade de um cão que parece já sofrer por sua condição braquicefálica, ou seja, que tem problemas respiratórios devido à própria anatomia de sua raça (buldogue inglês).
Clique aqui para ler “Um documentário para você nunca mais tomar leite”.
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