Categorias: Pequenas Narrativas

Quando percebeu a dor das galinhas

Arte: D’Ávila

Olhou para uma galinha e a viu reduzir-se em partes. Os pés também já estavam quase desconectados do corpo quando parou e o observou. “Parece uma galinha caipira.”

Eram estranhos cortes limpos aos quais animal nenhum sobreviveria. Mas ela estava ali e continuou ali. “Por que estou vendo isso?” Isso não era isso, ainda que o apetite tentasse validar mais uma vez o contrário.

O corpo da galinha começou a balouçar e esquentar. Ouviu sons que não imaginou ser duma ave. “E galinha faz assim?” Desde sempre – foi o que ouviu de algum alugar que não identificou porque desejou.

De repente, um ovo fritou dentro da galinha, destruindo o oviduto e fazendo-a gemer e contorcer-se até tombar. Então o último a oferecer sem querer caiu no chão – à milanesa – coberto por terra fina e sangue.

Os pés separados deixaram pequenas assinaturas de quatro dedos naquele ovo. “Era como tipo dum carimbo, mas que causou-me ânsia.” A fragilidade dos pés, o formato dos dedos e sua ausência de boa cor deram-lhe ideia de um par de pés mortos, e já não sabia se estava diante de uma criatura que vivia.

“Como viveria naquelas condições? Quem sobreviveria?” E a galinha tentava chegar até ele quando notou que seus próprios pés sumiram e não poderia afastar-se dela nem impedir aproximação.

“Então perdi os braços que apagaram-se como inexistentes. Pensei se havia uma mensagem…o que seria isto? Uma manifestação de reparação de vidas por ação oposta que salta à memória na certeza que prefiro como incerteza?”

Mais perto da galinha que já rolava sem os pés, tentou fazer igual e não conseguiu. Não sabia rolar. “Não entendi como. Por que não? E quem saberia?” A galinha começou a assar conforme rolava, e sua dor era tão intensa que crispou o bico deformado que parecia dedo apontado.

“E suas penas caíam e sua pele derretia. Que agonia! Parou já assada diante dos meus pés. Os olhos continuavam vivos, com sangue na esclerótica, e miravam-me. Desejei apenas enterrar-me na terra e desaparecer – como se isso pudesse levar-me para algum lugar vazio em confrontos com outros ou com minha inconsistência.”

 

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David Arioch S.A. Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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