Romance de Olga Tokarczuk estimula reflexão sobre a exploração animal

Vencedora do Nobel de Literatura de 2018, a escritora polonesa Olga Tokarczuk lançou em 2009 o romance “Sobre os Ossos dos Mortos”, também definido como uma fábula sobre vida e morte, que chegou ao Brasil dez anos depois por meio da Editora Todavia.

O livro tem como protagonista a senhora Dusheiko que, assim como a autora, não come carne e, no decorrer da história, questiona a forma como nos relacionamos com os animais. Além disso, é a maneira como eles são tratados que motiva algumas ações que desempenham papel fundamental no romance fabular.

A senhora Dusheiko é o maior contraponto em um cenário onde a violência contra os animais é naturalizada e incentivada, e não apenas por meio do consumo, já que ela reside em uma localidade rodeada por florestas, e onde quase todo mundo caça.

Nesse cenário, sua percepção é destoante. “Os animais mostram a verdade sobre um país — eu disse. A atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa”, diz na página 81. “Quantas vezes é possível olhar corpos mortos? Será que isso nunca vai acabar?”

Outro fato amparado em uma contradição comum fora da ficção, e criticada pela protagonista, é que o médico veterinário do lugarejo é um caçador. “Está em conluio com eles”, critica a senhora Dusheiko.

Ela também se indigna com a construção de púlpitos na floresta, que chama de diabólicos. “Precisamos chamar as coisas pelo nome”, frisa na página 84. O local é utilizado pelos caçadores para ter uma boa visão dos cochos onde colocam frutas frescas e trigo para atrair animais silvestres que, com o tempo, tornam-se mansos e mais fáceis de matar. Ou seja, há um óbvio e reprovável ardil na prática.

“Queria conhecer a escrita dos animais — continuei —, os sinais com os quais pudesse escrever avisos para eles: ‘Não se aproximem deste lugar’, ‘Este alimento é letal’, ‘Fiquem longe dos púlpitos, de lá vocês não ouvirão ninguém pregar o Evangelho, tampouco virá uma boa palavra, não lhes prometerão salvação depois da morte, não se compadecerão de sua pobre alma, pois eles dizem que vocês não possuem alma. Não verão em vocês um próximo, não lhes abençoarão.’

Depois a senhora Dusheiko reprova de forma mais enérgica a crueldade contra os animais. “Quando você os mata, e eles morrem sentindo medo e terror — como esse javali cujo corpo jazia diante de mim ontem, e que permanece lá, humilhado, enlameado e coberto de sangue, transformado em carniça —, você os condena ao inferno e o mundo todo se transforma num inferno. Será que as pessoas não enxergam isso? Suas mentes não são capazes de ir além dos prazeres pequenos e egoístas? A responsabilidade do ser humano com os animais é guiá-los — nas sucessivas vidas — à libertação. Estamos todos viajando na mesma direção, da dependência à liberdade, do ritual ao livre arbítrio”, diz a protagonista na página 85.

A partir da caça de um javali, a senhora Dusheiko conduz a uma reflexão mais ampla, que é parte da realidade comum de um número muito maior de pessoas em comparação com a caça.

“Você vai dizer que é apenas um javali — continuei. — E essa enxurrada de carne vinda dos açougues que inunda as cidades todos os dias como uma incessante chuva apocalíptica? Essa chuva prenuncia massacres, doenças, uma loucura coletiva, o ofuscamento e a contaminação da mente. Nenhum coração humano é capaz de aguentar tanta dor. Toda a complicada psique humana foi criada para não permitir que o ser humano entenda aquilo que vê de verdade.”

A protagonista comenta que para ofuscar a realidade por trás disso, usamos de ilusão e conversa fiada, o que ajuda a fazer do mundo uma prisão cheia de sofrimento, construída de tal forma que há um enaltecimento da crença de que para sobreviver é preciso causar dor aos outros.

“Que mundo é esse? O corpo de um ser transformado em sapatos, almôndegas, salsichas, num tapete junto à cama, num caldo preparado à base dos ossos de um outro ser… Sapatos, sofás, uma bolsa feita da barriga de um ser, aquecer-se com a pele alheia, alimentar-se com o corpo de outro, cortá-lo em pedaços e fritar em óleo… Será que é possível que esses procedimentos macabros aconteçam de verdade? Essa grande matança cruel, insensível, mecânica, sem nenhum remorso, sem nenhuma pausa para pensar, embora muito pensamento esteja implicado a filosofias e teologias engenhosas. Que mundo é esse onde matar e causar dor é tido como algo normal? O que diabo acontece com a gente?”, desabafa na página 86.

Ela defende que os seres humanos têm uma grande responsabilidade com os animais silvestres e também chama atenção para a importância de uma maior consideração em relação aos animais domésticos – não apenas cães e gatos. “É preciso que eles vivam sua vida dignamente, acertem suas contas e registrem seu semestre no histórico cármico — fui um animal, vivi e me alimentei; pastei em campos verdejantes, pari a cria, a aqueci com meu próprio corpo; construí ninhos, cumpri meu papel.”

Os questionamentos sobre o valor que atribuímos à vida dependendo da espécie vão e voltam no decorrer de “Sobre os Ossos dos Mortos”, e mantêm-se ácidos em consequência da funcionalidade e da mecanicidade que enxergamos em vidas que não são nossas, e por isso nos vemos em posição de nos apropriarmos delas.

“Não conseguia deixar de pensar naquilo que carregavam na barriga, o que comeram no dia anterior e hoje, se já tinham digerido os presuntos, se as galinhas, os coelhos e os bezerros já tinham passado por seu estômago”, narra na página 182.

Num momento de grande indignação, a senhora Dusheiko faz um desabafo e sugere a necessidade de uma intervenção divina, ainda que a considere improvável. “Pensei que se existisse um Deus verdadeiramente bondoso, deveria aparecer em sua forma real como um carneiro, uma vaca ou um cervo e trovejar com sua voz poderosa, deveria berrar, e se não pudesse aparecer em pessoa, então deveria mandar seus vigários, seus arcanjos de fogo, para que acabassem de vez com essa terrível hipocrisia. No entanto, é claro que ninguém interveio. Jamais intervém.”

Na página 194, a protagonista diz que os animais não têm voz nos parlamentos, em crítica à ausência de políticas mais eficazes voltadas aos direitos animais na Polônia, o que, trazendo para a realidade, podemos perceber também como uma deficiência no Brasil e em muitos outros países.

Referência

Tokarczuk, Olga. Sobre os Ossos dos Mortos (2009). Editora Todavia (2019).

 
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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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