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Se quem mata animais profissionalmente é cruel, devemos nos perguntar, é cruel em nome de quem?

Há muito tempo quem mata animais no matadouro é associado à crueldade. Encontramos exemplos em “O Primeiro Passo”, quando Tolstói cita uma mulher que deseja carne, mas que é sensível demais para ter contato com a realidade do matadouro, porém não o suficiente pra deixar de comer carne.

Então a ligação entre ela e a carne só é possível pelo que ela não pode ver e pelo “autor da crueldade” que ela não deseja conhecer. A gratidão surge em forma de dissimulação – o comer pelo que não se pode fazer. É como, por paradoxo, não querer um mal desejando-o.

Kafka e Coetzee também exploram a percepção sobre o “abatedor” e o “açougueiro”, quando os papéis eram um e mais tarde tornam-se dois. Quem mata é depreciado, e quem come carne também crê que pode depreciá-lo, numa estranha relação em que o acusador é razão do acusado.

Um é abstrato para o outro, pela não ideia do quanto e dos “quem” alguém mata e do quanto e dos “quem” alguém consome. Essa incoerência não é recente, embora não se possa negar que o sistema alimentar hoje facilita uma dissimulação de outro tipo, mais sofisticada.

Referencio também o que traz à tona Keith Thomas em “O Homem e o Mundo Natural” sobre o abate de animais. Ele cita que o filósofo David Hartley afirmou em 1748 que “tirar a vida de animais a fim de convertê-los em comida faz grande violência aos princípios de bondade e compaixão”.

Hartley é bem intencionado, mas faz uma separação entre autor e financiador, motivando mais um pensamento que concentra a culpa no primeiro, como se ele não matasse para corresponder aos anseios de outrem. Também faz um jogo com a crença dos “deveres indiretos”, em que a responsabilidade em relação ao mal contra outros animais deve levar em conta nossa responsabilidade conosco.

Adam Smith, principal teórico do liberalismo, controversamente, também conforme Thomas, observou que “o ofício de um açougueiro é função brutal e odiosa”. Todos os adjetivos são voltados a quem mata, mesmo que o foco da matança não seja o próprio consumo. Isso também ocorre hoje.

Assim, é como se falassem de pessoas que, ignorando o viés institucionalizado da prática, sua normalização, não matassem para os outros, havendo uma desconsideração de responsabilidades, e que não podem ser ignoradas como primárias. Se quem mata animais profissionalmente é cruel, devemos nos perguntar, é cruel em nome de quem?

David Arioch S.A. Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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