Opinião

Será que somos assassinos aos olhos dos animais?

A verdade que muitos se negam a ver é que assim como vítimas humanas de assassinatos não têm qualquer anseio em morrer, os animais não humanos nos matadouros partilham do mesmo interesse (Foto: Anita Krajnc/Toronto Pig Save)

Vamos esquecer por um instante o conceito legal, tradicional e legitimado socialmente de certo e errado e suas implicações ulteriores. Será que o famigerado Assassino do Zodíaco poderia ser considerado um executor com uma proposta de morticínio que segue os princípios do “abate humanitário”?

É inegável que ele era um psicopata que usurpava vidas, e por isso merecia ser responsabilizado por seus atos. Mas, por pior que fossem suas ações, me parece, valendo-me de sua trajetória, que ele não deixava de ter um “estranho e particular código de ética”.

Morte com tiros cirúrgicos

Afinal, ele matava suas vítimas com tiros cirúrgicos, com precisão letal. Suas ações, independente de motivação, não deixavam rastros de passionalidade. Como um criminoso organizado, era como se estivesse apenas cumprindo um trabalho; tanto que sequer tocava suas vítimas.

Ele não as torturava; não tinha qualquer interesse ordinário ou especial pelo sofrimento, mas apenas pelas consequências daquilo que não existiria sem o sofrimento pessoal ou transferível em algum nível. Ou seja, a morte.

O contato direto, a fisicalidade, não o interessava. O seu ritual se resumia ao gatilho. O prazer, se existiu, estava no disparo, e o seu clímax no desvanecimento da existência. Foi isso que impediu que ele jamais fosse capturado. Não era previsível nem imprevisível. Ostensivo e privativo, eu diria. Usava sempre o mesmo uniforme e quase sempre a mesma arma.

Assassinato e pistola de atordoamento

Seu modus operandi e sua assinatura eram unos e indefectíveis na sua expressão e categoria nos anos 1968 e 1969. Seu método empedernido, mesmo que não motivado economicamente, já que não lucrava para matar, me levou a uma associação, concordem ou não, entre a sua pistola e a pistola de dardo cativo ou de “atordoamento”, usada nos matadouros.

Me refiro à pistola empunhada pelos magarefes para disparar com brutal naturalidade um dardo que penetra o crânio de um animal não humano e atinge seu cérebro na tentativa de insensibilizá-lo no processo de abate. Se fizéssemos isso com seres humanos, independente de motivação, mesmo que em um caso de reparação ou de “lei de talião”, não seríamos considerados assassinos, monstros?

Jeffrey Dahmer lobotomizava suas vítimas humanas. Será que o que fazemos com os animais antes de matá-los nas linhas de execução é tão diferente da lobotomização? Já que o disparo da pistola de dardo cativo rouba-lhes a própria identidade, tornando-os inúteis na sua própria essência, assim como os lobotomizados.

Impacto de se trabalhar matando animais

Acredito que há muitos funcionários de matadouros que realmente não sentem prazer em tirar a vida de um animal não humano, já que muitos cumprem esse trabalho por alegada necessidade. Porém, será que isso não impacta em suas vidas? Em seu estado emocional e psicológico?

Imagine ter um cotidiano pautado em violentar e matar animais. É preciso crer que está diante de objetos, não de vidas. É imprescindível desligar a compaixão – permitir-se uma dissociação. Do contrário, não serve para o trabalho.

Não que trabalhar em um matadouro transforme essas pessoas em sujeitos terríveis, já que são seres humanos imersos em um universo de legitimação de mortes de outras espécies. Afinal, eles seguem o protocolo da indústria e não ousam questioná-la por diversos fatores – pessoais ou não. A atividade se resume a ser pago, em muitos casos mal pago, para matar sob o respaldo legal.

Roupagem de atividade comum

Há uma “roupagem” de atividade comum, impedindo que aquele que mata um animal em um contexto regulamentado pela legislação reconheça isso como errado, cruel, e menos ainda como assassinato. Claro, porque a humanidade diz que está tudo bem em matar, desde que não seja um ser humano (claro que nem sempre); e desde que aquela morte gere algum produto ou bem de consumo.

O mundo ao seu redor diz que o que ele faz é certo numa proporção muito maior do que a condenatória, já que o valor da vida animal não humana é proporcional ao peso da carcaça no contexto comercial. Porém, há um aspecto tétrico a se considerar. Essa realidade pode brutalizar o ser humano e transformá-lo, se assim o permitir.

Se o executor desenvolve prazer pelo que faz, mesmo que isso signifique a morte de ser de outra espécie, ele corre o risco de abrir definitivamente mão de uma das qualidades mais importantes do ser humano, que é a empatia. Isso realmente não é impossível. Vídeos amadores pululam no YouTube mostrando que como os animais não partilham do mesmo código comunicativo que nós, há aqueles que agem deliberadamente como psicopatas em relação aos animais de outras espécies.

Naturalização da violência pode asselvajar o ser humano

O contato naturalizado com a violência pode asselvajar o ser humano, principalmente aqueles que já têm predisposição à ferocidade; ou a transferir frustrações aos vulneráveis com quem convive – com destaque para aqueles que não podem reclamar do próprio sofrimento por não terem uma voz que inspira respeito e consideração.

Quem não se recorda do clássico do cinema de terror intitulado “Texas Chainsaw Massacre?” Nas partes mais pesadas do filme, estamos diante de um matadouro, e tudo que acontece lá dentro choca facilmente os seres humanos porque as vítimas são humanas. Por outro lado, ignoramos que aquela é a realidade ordinária não humana. Desconsidere a figura do serial killer e substitua os personagens humanos do filme por animais e você terá uma representação trivial do cotidiano.

Pessoas penduradas em grilhões, e sendo golpeadas violentamente, assim como fazemos com porcos; e, claro, tendo partes de seu corpo removidas. O código de comunicação do assassino também parece ser outro, e a sua ausência de empatia faz refletir sobre a empatia que negamos aos seres de outras espécies.

É como se não ouvíssemos os animais

É como se não ouvíssemos os animais, assim como os assassinos em série não ouvissem os seres humanos – como se enxergassem a si mesmos como uma espécie além – dotada do direito de nos exterminar. Analise alguns discursos de serial killers e você verá que não é difícil perceber que vários deles se referem às suas vítimas como se fossem bovinos e suínos.

Claro que a minha intenção não é chamar de assassino quem sobrevive matando animais, mas o ato em si é análogo a um assassinato quando subtraímos vidas que não nos pertencem, independente de finalidade. Mas o mundo e a nossa realidade social, cultural e econômica nos dizem diariamente que esse assassinato é justo, necessário e legal, porque tem o aval da maior parte da população e do Estado.

A morte de animais, além de cruel e evidentemente desnecessária, já que é possível viver muito bem sem matar outras espécies para consumo, pode preparar alguém para ações que, enfim, despertem a atenção da população, deixando-a em choque, como é o caso dos crimes cometidos pelo Zodiac Killer citado no início do texto.

Assassinos adotam métodos usados em matadouros

Há quem diga que o meio e a naturalização da violência contra não humanos pode reduzir a inibição de alguém em matar pessoas. Não posso afirmar, mas não duvido.

No entanto, é reconhecível que inúmeros assassinos e serial killers adotaram em suas execuções métodos comuns em matadouros e na indústria da carne. Exemplos são Jeffrey Dahmer, Robert Pickton, os Bloody Benders, Ottis Toole, Albert Fish, Ed Gein, Béla Kiss, Richard Trenton Chase, Joachim Kroll, Armin Meiwes, Andrei Chikatilo, Arthur Shawcross, Issei Sagawa e Robert Maudsley, entre outros.

Será que aos olhos dos animais não humanos que seguem matadouro adentro não existe a possibilidade de que sejamos vistos como assassinos? A verdade que muitos se negam a ver é que assim como vítimas humanas de assassinatos não têm qualquer anseio em morrer, os animais não humanos nos matadouros partilham do mesmo interesse. Uma prova disso? Antes de executar um animal, dê a ele, ou peça que deem a ele, a oportunidade de fugir. Então você terá sua resposta.

David Arioch S.A. Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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