Um presidente vegano mudaria a realidade do Brasil?

Em 2020, as torres do Congresso Nacional receberam projeção da frase “Considere [o] veganismo” (Foto: Vanessa Negrini)
Vamos considerar que um vegano tenha chances de ser presidente do Brasil, que tenha um apoio considerável de parte da população. Como a maior parte da população do país não é vegana, o apoio a ele não teria relação com o veganismo, mas com outras questões. Portanto sua plataforma de campanha não poderia ser focada no veganismo. Isso também não quer dizer que ele não poderia tentar promover algumas mudanças que favoreçam o veganismo mesmo sem falar em veganismo.

Porém é preciso considerar que um candidato vegano, mesmo que fosse viável, já enfrentaria obstáculos em um país onde mais da metade do Congresso Nacional – deputados e senadores – faz parte da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Assim, projetos de lei que favoreçam o veganismo seriam antagonizados por esses políticos que têm grande influência em comissões-chave, poder midiático (hegemonia do agro nas mídias) e influência cultural.

Só o fato de um candidato à presidência ser vegano, se ele tiver uma boa base de apoio, já que no Brasil cargos executivos geralmente recebem mais atenção do que cargos legislativos, já o colocaria na mira de ruralistas. Narrativas até de que iria destruir a economia e proibir a carne na mesa do brasileiro surgiriam para tentar acabar com sua viabilidade eletiva (republicanos fizeram algo parecido contra o senador Cory Booker nos EUA). E o setor tem grande poder econômico para fazer isso ressoar entre milhões no Brasil.

Mesmo que fosse eleito, um presidente vegano teria de lidar o tempo todo com a pressão da bancada ruralista, que é dominante. Pode parecer fácil dizer que é só ser contra a bancada ruralista em tudo, mas a realidade da política é muito mais complexa do que isso – porque essa bancada também poderia se mobilizar para prejudicar qualquer iniciativa que pudesse ser favorável aos animais e ao veganismo. E muitos veganos poderiam achar que “é o presidente que não faz nada”.

Por isso é importante não cair no reducionismo de que ao escolhermos um presidente que mais condiz com o que defendemos, tudo melhorará se ele for eleito. Um presidente só pode fazer grandes mudanças se não tiver um Congresso Nacional o antagonizando, trabalhando contra ele.

Para a bancada ruralista é positivo quando aqueles que tentam fazer algo em defesa do meio ambiente ou dos animais são criticados por seus eleitores, como se não estivessem fazendo nada – porque isso ignora que essa realidade é uma consequência da movimentação da própria bancada ruralista na inviabilização disso.

Então quando veganos dizem que a solução seria ter um presidente vegano, eles estão ignorando a complexidade da realidade política. Claro que se pode dizer que seria bom ter um presidente vegano, mas promover transformações favoráveis ao veganismo é outra história, já que isso não depende somente de um presidente.

Há três fatores que provavelmente seriam explorados contra um candidato à presidência vegano, mesmo que não falasse em veganismo:

Associar o veganismo a um “projeto autoritário” (visão que sequer faz sentido, já que o veganismo gera mudança por meio de conscientização e educação), criar pânico econômico (manipulando de forma capciosa dados do PIB e a afirmação de “destruição de empregos”) e promover uma polarização cultural (retratar o veganismo como um “estilo de vida de privilegiados urbanos”, alienado do “Brasil real”) – ignorando que o veganismo só faz sentido fora do classismo, já que é um movimento que depende do envolvimento das classes populares para ter um grande crescimento.

O que torna também urgente a compreensão do impacto da Frente Parlamentar da Agropecuária é que se um presidente tentar pelo menos avançar com pautas como redução de subsídios à carne ou incentivo às proteínas vegetais a bancada já pode retaliar e travar inúmeros projetos do governo, já que o Congresso Nacional costuma usar o controle do orçamento como meio de pressão. Ou seja, poderia, por exemplo, cortar verbas de programas voltados à agricultura familiar orgânica ou alimentação escolar vegana – desidratando as políticas.

Também pode engessar gastos – incluindo emendas obrigando o governo a comprar carne para hospitais/escolas, mesmo que o Executivo queira valorizar mais opções vegetais. Além disso, pode priorizar emendas parlamentares – direcionando verbas para frigoríficos em troca de apoio político, sufocando alternativas. Pode ainda atrasar a aprovação do orçamento, paralisando projetos do governo até que ele abandone regulamentações contra maus-tratos a animais ou incentivos às proteínas vegetais.

Se um governo tentasse reduzir subsídios à pecuária, a bancada ruralista poderia travar o orçamento inteiro até fazê-lo recuar. Isso mostra que o orçamento nas mãos de um Congresso formado, em sua maior parte, por antagonistas, pode facilmente prejudicar um governo bem-intencionado. Portanto é preciso conscientizar para fragilizar essa influência.

Isso, claro, não quer dizer que um presidente deve desistir de tentar promover mudanças relevantes como ampliar subsídios para a agricultura familiar orgânica, viabilizar a inclusão de alimentação vegana (pode-se também usar outro termo) na alimentação escolar de todo o país. Também pode tentar promover campanhas de redução do consumo de carne – se houver um impacto realmente significativo, isso pode favorecer uma transformação estrutural.

Um presidente também pode tentar normalizar discussões sobre alimentação ética ou de menor impacto, assim como fortalecer órgãos de fiscalização envolvendo desmatamento, exploração em fazendas e atuação em frigoríficos.

Ainda assim, são considerações que, como observado antes, podem ser do interesse de um presidente colocar em prática, mas esbarrar nos entraves gerados ou influenciados pela bancada ruralista e pelo setor agropecuário.

Logo, como mudanças estruturais dependem do legislativo e da sociedade, é preciso pressionar o Congresso – mas a força dessa pressão também dependerá do envolvimento do maior número possível de pessoas, e não somente de veganos, já que o veganismo ainda é pouco representativo no Brasil.

O exemplo recente da exposição da atuação do Congresso Nacional contra os interesses da população, como exposto pelo Governo Federal, mostra que a reação popular também pode gerar impacto, se a população se mobilizar para se voltar contra as ações do Congresso.

Por outro lado, sabemos que quando se trata de questões relevantes para o veganismo o que está sendo discutido só terá o apoio popular contra o Congresso se uma determinante parcela da população reconhecer importância nessas questões – portanto isso deve ser explorado de forma a não ignorar que a população precisa sentir que precisa reagir, o que requer mostrar como isso impacta também não somente em quem é vegano ou simpatizante.

Além disso, é preciso eleger deputados e senadores aliados, que não veem relevância somente em pautas convenientes como as que envolvem cães e gatos. O Brasil hoje sequer tem uma relevante frente parlamentar em defesa dos animais e do meio ambiente.

A mudança também depende de aliança com outros setores – parcerias com ambientalistas, pesquisadores e até pecuaristas que são suscetíveis a mudanças favoráveis ao veganismo. Isso pode parecer contraditório, mas realmente há pecuaristas que podem ser aliados, que não estão alinhados à Frente Parlamentar da Agropecuária.

Dialogar com outros movimentos também ajuda a somar. A força disso depende de uma conexão com prioridades populares – preços dos alimentos, saúde pública e crise climática (explorada de uma forma que as pessoas entendam com clareza como isso pode prejudicá-las – e como isso pode ter impacto até na capacidade de trabalhar em decorrência do aumento de temperaturas extremas ou de produzir alimentos – o que eleva seus custos).

A eleição de um vegano não garantiria transformações profundas sem um movimento político mais amplo sustentando essas mudanças. A realidade política brasileira exige negociação, estratégia e pressão constante – não basta ter um presidente alinhado com a causa se o Congresso e a mídia dominante forem hostis, podendo exercer grande influência sobre a opinião pública.

Além disso, qualquer avanço pode ser desmontado em um governo seguinte (como ocorreu com políticas ambientais já estabelecidas no Brasil e que foram desmontadas no governo subsequente). Portano a luta não é só por um presidente, mas por uma contra-hegemonia cultural e política que resulte também em uma forte base congressual aliada – que possa fazer frente à FPA.

É preciso também construir um movimento que sobreviva a mudanças políticas e ofensivas reacionárias. Na Nova Zelândia, por exemplo, quando um governo de coalizão conservadora decidiu revisar políticas climáticas, o movimento reagiu com pressão jurídica e institucional – ativistas e ONGs entraram na justiça para garantir que metas de redução de emissões (como o Zero Carbono 2050) não fossem abandonadas.

Também fizeram alianças com o setor privado, empresas de energia renovável e de turismo que dependiam da “imagem verde” do país. Além disso, protestos massivos como os da Generation Zero mantiveram o tema na mídia, dificultando qualquer guinada antiecológica. O resultado foi que o governo não conseguiu recuar nas políticas climáticas como havia prometido à sua base.

Outra alternativa no Congresso Nacional

Outra alternativa, considerando a força da Frente Parlamentar da Agropecuária, é traçar o perfil de todos os seus participantes e analisar quais podem estar dispostos a um diálogo. Um presidente poderia liberar verbas para tecnologia agrícola sustentável em troca de aprovação de um programa de alimentação vegana. É possível que membros, principalmente aqueles que não são grandes ruralistas, também possam ser convencidos com incentivos à agroecologia (que gera mais lucro que commodities).

Contornar o Congresso

Se o Congresso bloquear leis, há casos em que o governo pode regulamentar por normas do Ministério da Agricultura ou Saúde. Também pode barrar a obrigação de servir carne em escolas recorrendo ao STF sob a justificativa de inconstitucionalidade – o que entra em conflito com uma alimentação saudável mais baseada em vegetais.

Também pode recorrer a um orçamento paralelo – usar fundos não controlados pelo Congresso, como verbas internacionais para ações climáticas, que também podem ser usadas em programas que favorecem o veganismo, pelas relações estabelecidas.

Pressão popular e mídia

Há sempre a possibilidade também de mobilizar consumidores, expor conflitos de interesses, como quando pecuaristas que integram a FPA, seja na Câmara ou no Senado, propõem projetos de lei que não têm relevância para a população, mas sim para o setor – como proibir o uso dos termos “carne” e “leite” para produtos de origem vegetal. Ou se opor a subsídios para proteínas alternativas de origem não animal.

Um exemplo de como lidar com a pressão 

Quando os Países Baixos propuseram a redução de rebanhos para cortar emissões, fazendeiros realizaram protestos. Como solução, o governo os compensou com subsídios para transição e usou a União Europeia para validar as metas ambientais. Isso mostra que no Brasil se um presidente quiser reduzir subsídios à pecuária, um caminho pode ser oferecer alternativas econômicas – incentivo à produção de proteína vegetal, por exemplo. Por outro lado, também não podemos ser ingênuos de ignorar que há políticos ruralistas tradicionalistas que rejeitariam e até combateriam isso. Mas nem por isso também não se deve tentar nada.

Observação

Enquanto não houver uma bancada que faça frente à bancada ruralista, as alternativas são criar uma crise de imagem para os ruralistas (pressão popular + mídia), contornar o congresso (por meio do Executivo, STF e orçamentos alternativos) ou jogar o jogo político (negociar com setores menos radicais do agro). Um grande erro seria subestimar o poder do Congresso. O caminho é articulação + pressão + criatividade institucional.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

Uma resposta

  1. “Associar o veganismo a um “projeto autoritário” (visão que sequer faz sentido, já que o veganismo gera mudança por meio de conscientização e educação), criar pânico econômico (manipulando de forma capciosa dados do PIB e a afirmação de “destruição de empregos”) e promover uma polarização cultural (retratar o veganismo como um “estilo de vida de privilegiados urbanos”, alienado do “Brasil real”) – ignorando que o veganismo só faz sentido fora do classismo, já que é um movimento que depende do envolvimento das classes populares para ter um grande crescimento.” De fato.

    1. Associar o veganismo a um projeto ou movimento “autoritário”, ou “terrorista”, infelizmente, já é realidade num país como os EUA, exemplificado no caso de uma ativista norte-americana que foi enquadrada numa lei anti-terrorista de lá, como mostrado no documentário Christspiracy. Por enquanto, aqui no Brasil, isso parece acontecer, a meu ver, apenas no âmbito das redes ou do convívio social cotidiano, quando, assim como é feito com o movimento feminista chamando algumas mulheres de “feminazi”, alguns veganos são chamados também nesse sentido de “veganazi”, embora eu não tenha ouvido essa expressão ainda (mas é questão de tempo); se considerarmos a atuação de ativistas que se articulam como os militantes da ALF, que entram em matadouros e laboratórios usando máscaras e estratégias consideradas “criminosas” pelo establishment, imagine o que uma mídia como a nossa, pecuarista até o caroço, não faria para criar uma imagem negativa e deturpada do movimento no Brasil, e que, por isso talvez recebesse ataques e críticas até de próprios veganos mais “paz e amor”, influenciados por aquela mesma orientação midiática…

    2. O pânico econômico: este, sim, parece ser o mais fácil para eles de colocar em prática e de forma mais rápida e abrangente através dos meios de comunicação. “Vocês, veganos, são contra o desenvolvimento econômico do Brasil! Vocês não produzem nada e ainda querem impedir o produtor e o trabalhador de trazerem comida para a mesa dos brasileiros!” etc etc etc. Não há sombra de dúvida que a questão econômica da perspectiva ruralista focaria nesse tipo de discurso: eles, os trabalhadores e produtores que colocam o país pra frente, que geram empregos, que põem comida na mesa do povo; os veganos? cambada de vagabundo que não conhece a realidade do agricultor ou de gente rica e privilegiada, que tem recursos pra dar R$ 30,00 numa caixa de leite vegetal e comprar tofu…

    3. E acrescentaria ainda no aspecto cultural outro problema compexo: o conflito ideológico com as outras pautas sociais, como feminismos, antirracismo e movimentos de orientação sexual. A meu ver, ao contrário dos que muitos sonham e pensam, vai chegar uma hora em que os interesses dos animais vai entrar em conflito com algum interesse humano, seja de que movimento cultural, etnia, grupo político ou religioso for… Todas essas bandeiras colocam como prioridade os direitos e os interesses humanos em primeiro lugar, e muitos deles, na tentativa de conseguir apoiadores e simpatizantes da causa animal, falam em “veganismo popular”, ou “ecossialismo”, ou “ecofeminismo” etc etc. Muito bem. Nenhuma oposição da minha parte no sentido que todas essas pautas são legítimas e são contra formas de opressão e repressão social. Indubitável. No entanto, muitos se dizem apoiar o veganismo também, mas só até o momento em que ele não interferir na ideologia ou na tradição que a pessoa preserva, enfim, nos valores que ela recebeu e ajudou a perpetrar ao longo da vida reproduzindo ou por medo ou por ignorância ou por simples comodidade. Repito: assim que o direito dos animais de não sofrerem, de serem livres e de viverem suas vidas em paz colocar sob ameaça ou ir de encontro a algum interesse humano supostamente defendido por certas bandeiras politicas, os humanos, sejam de esquerda ou de direita, vão fazer valer sua força e seu domínio sobre as outros animais, eles é que vão sair perdendo. Como diz o Milan Kundera em A insustentável leveza do ser: “O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo fraterno, mesmo durante as guerras mais sangrentas.” Não precisa imaginar um cenário de guerra com bombas e trincheiras: basta lembrar do plenário ou de uma comissão na Câmara dos Deputados…

    Eis aí um roteiro para uma distopia literária.

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