Categorias: Literatura

Upton Sinclair expôs crueldade na indústria da carne em 1906

Em “The Jungle”, Sinclair descreve a realidade dos trabalhadores e dos animais explorados pela indústria da carne (Fotos: Getty/NPR)

Em 1906, o escritor estadunidense e reformador social Upton Sinclair lançou o seu livro mais famoso. Intitulada “The Jungle”, a obra que denuncia a crueldade e as mazelas da indústria da carne teve grande repercussão nos Estados Unidos e influenciou o governo a fundar a Food and Drug Administration (FDA), órgão regulador responsável, dentre outras competências, pela fiscalização da produção alimentícia.

A riqueza de detalhes com que Sinclair descreve a realidade dos trabalhadores e dos animais explorados pela indústria fez com que milhares de pessoas mudassem seus hábitos alimentares na primeira década do século 20. E com a popularidade mundial do livro traduzido em mais de 50 idiomas, o número de adeptos de uma alimentação vegetariana cresceu de forma significativa.

Influenciado a se tornar vegetariano por John Harvey Kellogg, médico e cocriador do famoso cereal matinal, o escritor produziu uma obra de denúncia que até hoje é apontada como a mais influente sobre a cruel realidade da indústria da carne nos EUA.

Embora alguns pesquisadores afirmem que após alguns anos Upton Sinclair tenha abandonado o vegetarianismo, citando como exemplo um texto de 26 páginas intitulado “Fasting and the Use of Meat”, seu livro continuou influenciando muita gente a não consumir mais carne e a lutar por reformas sociais envolvendo as agroindústrias.

Exploração de imigrantes na indústria da carne

O protagonista de “The Jungle” é o lituano Jurgis Rudkus, um imigrante que mal sabe falar inglês e vive com a família em um distrito de Chicago dominado por currais e fábricas de carne processada. Desempregado, Rudkus aceita um emprego em um matadouro. Mas a desilusão cresce quando ele se vê endividado.

Às raias da miséria, é obrigado a sujeitar-se aos trabalhos mais degradantes, além de amargar experiências traumatizantes como a morte do pai, vítima da falta de segurança nas linhas de produção da indústria frigorífica. Em uma das passagens da página 38 de “The Jungle”, uma imigrante lituana se mostra chocada ao saber do destino de milhares de bois e vacas.

“E o que será de todas essas criaturas?”, questionou chorando Teta Elzbieta.

“Esta noite, todos serão mortos e fatiados. E logo ali, do outro lado dos depósitos de acondicionamento, há mais ferrovias, e de lá vêm os vagões que vão levá-los embora”, respondeu Jokubas Szedvilas. No total, dez milhões de criaturas sencientes eram transformadas em alimento pela indústria da carne a cada ano.

Animais e trabalhadores tratados como inferiores

Assim como os animais, os trabalhadores também eram tratados como seres inferiores, já que suas vidas consistiam em longas jornadas de trabalho. Exemplo disso é um adolescente que vencido pela exaustão e pela embriaguez dorme no trabalho, onde vira comida para ratos na madrugada.

Nesse trecho, Upton Sinclair denuncia ainda a falta de higiene nas linhas de produção. Também revela no livro que muitas vezes a carne bovina se misturava à carne dos ratos que morriam nas linhas de produção.

“À frente, havia uma grande roda de ferro, de 20 pés de circunferência e com anéis por toda a sua borda. […] Quando a roda virou, o porco teve seu pé arrancado e arremessado para o alto. Ao mesmo tempo, ouviu-se um grito aterrorizante; os visitantes ficaram alarmados; as mulheres empalideceram e recuaram”, escreveu Sinclair na página 40 de “The Jungle”.

No livro-denúncia, há uma conexão entre o sofrimento dos animais e dos homens; um não existe sem o outro em um contexto em que na prática o sonho americano não passa de uma distopia velada pela inocente fantasia. Nesse cenário, o maior financiador é o consumidor que alheio à excruciante realidade aceita tudo na sua passividade.

A omissão do Estado também endossa e justifica a existência dessas práticas. Publicado há mais de cem anos, “The Jungle” é uma obra que, em síntese, não apenas flerta com a atualidade, mas ainda diz muito sobre ela. “Queria tocar o coração do público, mas acabei tocando o estômago”, declarou Sinclair ao avaliar a recepção do livro.

Saiba Mais

Upton Sinclair nasceu em 20 de setembro de 1878 em Baltimore, Maryland, e faleceu em 28 de novembro de 1968 em Bound Brook, Nova Jersey.

O livro “Dragon’s Teeth” ou “Dentes de Dragão”, que garantiu o Prêmio Pulitzer a Upton Sinclair em 1943, narra o zeitgeist e o drama dos eventos registrados na Europa que resultaram no início da Segunda Guerra Mundial.

Referências

Harris, Leon. Upton Sinclair: American Rebel. Thomas Y. Crowell Company, New York (1975).

Mason, M. Diane. Mullins, T. Janet. Vegetarian 101: History, Health and Tips. University of Kentucky (2016).

Sinclair, Upton. The Jungle. Dover Publications; Unabridged Edition (2001).

David Arioch S.A. Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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