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Vacas e bezerros também sofrem em propriedades familiares

Uma reflexão a partir do filme “Tom na Fazenda”, de Xavier Dolan, em que há um encontro entre especismo e homofobia 

No filme “Tom na Fazenda”, do canadense Xavier Dolan, uma adaptação da peça homônima de Michel Marc Bouchard, há duas cenas de destaque para uma reflexão sobre a exploração animal.

Na primeira, Francis (Pierre-Yves Cardinal), que comanda a propriedade familiar dedicada à produção de leite, utiliza um trator para arrastar uma vaca com dois pés amarrados por uma corda.

O corpo do animal que já não pode ser explorado move-se sem vida. Francis não demonstra nenhum pesar pela vaca na sua morta fragilidade, e seus olhos não voltam-se para a vaca em nenhum momento e sim para uma direção contrária para onde ela será levada.

Isso evoca uma relação de distância baseada na instrumentalização da vida. A vaca se foi e sua morte não pode ser pensada em desconexão com uma comum imposição. Além disso, há outras vacas, sempre há, porque é uma realidade cíclica e ordinária.

Nisso, o que é exposto no filme não escapa ao que é comum sobre a exploração animal mesmo em propriedades familiares, já que a vida desses animais é condicionada à utilidade. Sobre a vaca, o que interessa é o que se pode subtrair a partir do seu viver.

A única surpresa é o olhar de Tom (Xavier Dolan), que observa o corpo da vaca morta sendo ralado no chão, levada para onde será descartada. Só ele olha diretamente para a vaca, e porque Tom é um estranho ali.

Sua presença é uma consequência de uma fatalidade. Mas não há mais vida no corpo não humano que não era pensado, por contradição, como que para a vida, mesmo que a exploração dependa do que é vida.

Enquanto o corpo da vaca e sua condição revelam uma falta de cuidado, Tom toma um banho – como antítese, como íntima rejeição ou purificação. Isso pode ser interpretado tanto sobre o que é humano quanto não humano, em um trânsito correlacional, que será explicado mais adiante.

Depois, ele tenta se adaptar e passa a participar do trabalho na propriedade, o que pode levar a uma conclusão de conformismo, de que as coisas apenas são como são. Mas isso não dissipa completamente o estranhamento.

Cena emblemática disso surge quando, mais tarde, Tom encontra um bezerro, um subproduto dessa realidade. O animal tão jovem está morto e ele chora enquanto carrega para fora o bezerro nos braços. O bezerro é uma vítima daquela realidade da qual não pode escapar. Naquele contexto, Tom também é vítima, um outro tipo.

A sensibilidade de Tom nessa cena é tanto sobre o não humano quanto sobre o humano. É sobre vulnerabilidades em contato. A interação do corpo vivo com o corpo morto é sobre quem já foi vitimado por uma violência inescapável e quem poderá libertar-se dela.

Se os animais explorados para consumo sofrem com o especismo, naquele lugar, Tom sofre com a homofobia de Francis, que é irmão do seu falecido namorado e busca exercer domínio sobre ele assim como exerce sobre outros animais.

Francis tem uma ânsia por estar no controle de tudo e de todos, de estabelecer com eles, não humanos e humanos, uma relação que não seja outra que não de submissão aos seus interesses. O que é relevante ao outro só é relevante em conformidade com o interesse de Francis.

Portanto a relação de Francis com os humanos também reproduz sua relação com outros animais – um reflexo do que sobre ele é domínio, violência, brutalidade, intransigência.

Ao exercer domínio sobre os animais que explora e, ao mesmo tempo, querer exercer domínio sobre Tom, ele não reconhece em Tom sua própria autonomia, assim como nega aos animais o direito a algum tipo de autonomia.

Tom também passa a tentar justificar o comportamento de Francis, e o que é imposição torna-se, por constante ação abusiva e não reconhecida dessa forma por problemas de autoestima, temporária aceitação. Francis, que rejeita a homofobia que interage com o que é oposto a ela em seu íntimo, em seus desejos, visa condicioná-lo, assim como são condicionados os animais que explora por interesses econômicos.

Mas, ao contrário dos animais da fazenda de Francis, Tom não morrerá na fazenda nem em consequência do que é domínio a partir do que é determinado por Francis na fazenda, porque ele, como humano, pode prevalecer de uma forma que outros animais não podem.

O filme está disponível no Mubi.

 

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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