Categorias: Literatura

Em “Viagens de Gulliver” há um país em que humanos são considerados irracionais por outros animais

Ilustração: J.J. Grandville

No livro satírico “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift, publicado em 1726, Gulliver chega a um país de cavalos conhecido como o País dos Huyhnhnm. Lá, o protagonista descobre que, para eles, os humanos são irracionais. A idealização desse universo na quarta parte do livro é uma crítica de Swift à concepção da racionalidade humana e classificação de outros animais como irracionais. No século 19, isso foi explorado por Mark Twain, como também já abordamos.

Logo que chega ao país dos cavalos, Gulliver não perscruta os cavalos mais do que eles o perscrutam. “[…] atrevi-me a colocar-lhe a mão sobre o pescoço, acariciando-o, assobiando e falando à maneira dos palafreneiros, quando querem acariciar um cavalo; mas o animal, soberbo, fazendo pouco da minha delicadeza e da minha bondade, carregou a vista e levantou orgulhosamente uma das suas patas dianteiras para me obrigar a retirar a minha mão familiar demais. Ao mesmo tempo, desatou a relinchar três vezes, mas com uns sons tão variados, que comecei a crer que falava uma linguagem que lhe era própria e que tinha uma espécie de sentido ligado aos seus relinchos.”

Nessa passagem o toque humano não escapa a uma hierarquização na relação entre humanos e outros animais, em que quem define o tocar e o quando tocar é o ser humano, independentemente do consentimento ou interesse do animal. “Imediatamente apareceu um outro cavalo, que cumprimentou o primeiro muito delicadamente; ambos se trataram muito bem e começaram a relinchar de cem diferentes modos, que pareciam formar sons articulados; em seguida, deram alguns passos juntos, como se quisessem conferenciar sobre qualquer assunto; iam e vinham, marchando gravemente a par, semelhantes a pessoas que deliberam sobre coisas importantes; no entanto, não tiravam os olhos de cima de mim […].”

Amparando-se em sua visão antropocêntrica, Gulliver conclui que se esses animais “raciocinam assim, é porque os homens [de tal país] são de uma suprema inteligência”. Ou seja, em sua conclusão, tal raciocínio não humano só é possível porque o ser humano é o agente possibilitador desse raciocínio, logo havendo uma relação de dependência sem a qual não haveria tal raciocínio.

Mas ele é surpreendido mais tarde ao perceber que os humanos não governam tal país, e sim os cavalos, tendo o próprio termo huyhnhnm o significado de cavalo na língua dos cavalos, assim como o de “perfeição da natureza”. Nisso, Swift subverte criticamente o antropocentrismo baseado na crença da cadeia hierárquica do ser, que sustenta, por conveniência, a crença no domínio humano sobre outras criaturas baseado na ideia da “superioridade humana”.

“Os meus sapatos e as minhas meias inquietaram-nos, farejaram-nos e apalparam-nos por diversas vezes e fizeram sobre este assunto muitos gestos parecidos com os de um filósofo que tenta explicar um fenômeno.” Embora seja perceptível um certo antropomorfismo nos capítulos da “Viagem ao País dos Huyhnhnm”, Swift externa um interesse em destoá-lo, levando a uma reflexão sobre se são características primeiramente humanas ou o contrário.

Há outra passagem em que Gulliver insiste na racionalidade como característica estritamente humana, baseando-se na sua descrença de que os huyhnhnm sejam essencialmente cavalos:

“Enfim, a atitude e as maneiras desses dois animais pareceram-me tão racionais, tão prudentes, tão judiciosas, que concluí de mim para mim que talvez fossem encantadores que se haviam transformado em cavalos com qualquer desígnio e que, encontrando um estranho no seu caminho, tinham querido divertir-se um pouco à sua custa, ou tinham ficado atônitos com as suas feições, roupas e maneiras. Foi por isso que tomei a liberdade de falar-lhes nestes termos: – Senhores cavalos, se são feiticeiros, como tenho motivos para crer, decerto compreendem todas as línguas; assim, tenho a honra de lhes dizer, na minha, que sou um pobre inglês que, por fatalidade, naufraguei nestas costas e peço ou a um ou a outro que, se são realmente cavalos, me deixem subir para a garupa, a fim de descortinar alguma aldeia ou casa onde possa recolher-me. Como reconhecimento, ofereço-lhes este punhal e este bracelete. Os dois animais pareceram ouvir o meu discurso com atenção e, quando acabei, puseram-se a relinchar cada um por sua vez, voltados um para o outro. Compreendi então, claramente, que aqueles relinchos eram significativos e encerravam palavras com que, talvez, se pudesse fazer um alfabeto tão claro como o dos chineses.”

É perceptível que Gulliver resiste em tirar esses animais do lugar de instrumentalização, mesmo na conclusão equivocada de que são feiticeiros (logo pensados como humanos) que se transformaram em cavalos. Porém a proposta de montaria é rejeitada.

Em determinado momento, o protagonista passa a chamar o huyhnhnm que o abriga de amo, e passa a viver com esses cavalos por três anos e reconhecendo-os como tais. No país dos huyhnhnm, embora haja uma consideração dos não humanos pelos interesses do humano, é Gulliver quem deve se adaptar aos costumes e modo de viver dos cavalos, não o contrário:

“Entreguei-me extremamente ao estudo da língua que o huyhnhnm meu amo, (é assim que o tratarei de hoje em diante), seus filhos e criados tinham muita vontade de ensinar-me. Olharam-me como um prodígio e estavam surpreendidos de que um animal irracional tivesse todas as maneiras e todos os sinais naturais de um animal racional.”

Essa passagem evidencia bem a sátira de Swift em relação à excepcionalidade da racionalidade humana, porque a experiência de Gulliver ratifica a ele que para os cavalos os racionais não somos nós, embora eles reconheçam em Gulliver qualidades e características que não atribuem de forma generalizada aos humanos.

“Enfim, ao cabo de dez semanas, encontrei-me em estado de entender diversas vezes as suas perguntas, e três meses depois fiquei bastante habilitado para lhes responder regularmente. Uma das primeiras perguntas que me dirigiu, quando lhe pareceu que eu estava em condições de responder-lhe, foi indagar de que país eu vinha e como aprendera a fazer-me animal racional […] Muitos cavalos e éguas de distinção vieram, então, visitar meu amo, excitados pela curiosidade de ver um extraordinário Yahu [humano], que, pelo que tinham ouvido, falava como huyhnhnm e fazia brilhar, com as suas maneiras, as chispas do seu raciocínio.”

Referência

SWIFT, J. Viagens de Gulliver. Rio de Janeiro. 1. ed. Coleção: Clássicos Jackson Vol. XXXI (1950). Rio de Janeiro: W.M. Jackson, versão digital, 2004. 237 p.

David Arioch S.A. Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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