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E se você fosse insensibilizado e morto contra a sua vontade?

Vamos considerar que alguém seja insensibilizado para ser morto contra a sua vontade. Isso torna essa ação positiva? Desejável para a vítima? É uma reflexão válida considerando que um dos argumentos mais usados em defesa do abate de animais criados para consumo, e que ocorre o tempo todo, é baseado na afirmação de que é possível matar animais sem causar sofrimento.

Além disso ser discutível porque, além de não haver eficácia de 100% em processos de insensibilização, por fatores que podem envolver desde o estado do animal até o tempo determinado para a insensibilização (animais são reduzidos a números e números são metas), assim como falhas técnicas, é algo que desconsidera que o sofrimento do animal não está somente no momento de ser degolado.

Pensar dessa forma ignora as emoções do animal que precedem o momento de ser “insensibilizado” e degolado. Também ignora que a própria instrumentalização já é uma inevitável imposição de sofrimento – há marcações, mutilações e privações. Enfim, é sobre um animal criado para morrer, não para viver. Isso faz uma grande diferença para refletir em profundidade sobre o sentido do sofrimento e seu surgimento como imposição humana.

Mas, mesmo que a morte não seja uma experiência de sofrimento, se há, por exemplo, prazeres e a realização de outros interesses que buscamos, e sabemos que há muitos outros animais que também buscam isso, incluindo aqueles que são enviados para a morte por interesses de consumo, então considerar somente como o animal morre e não seus interesses em relação com a vida é algo que não faríamos em relação a nós mesmos.

Também não faríamos isso em relação a animais de espécies que não admitimos que sejam mortas apenas porque queremos matá-las com base em algum fim humano. Claro que a experiência de sofrimento de um animal ao ser morto deve ser considerada, mas jamais deve ser o único argumento para não matá-lo, porque se houvesse uma garantia de “não sofrimento” em relação a todos os animais que são mortos para consumo, por exemplo, então estaria tudo bem?

Pensar o sofrimento é muito importante, mas não sofrer não é o único interesse de um animal. Qualquer um de nós reconhece isso ao observar um animal. Sua relação com o mundo estar somente no presente também não é justificativa para privá-lo de interesses. Um animal não precisa ter a capacidade de planejar o futuro para ter o direito de não ser explorado e morto para consumo. Há humanos que também não têm essa capacidade. Deve-se defender que sejam mortos por isso?

Se um animal, por exemplo, tem uma condição biológica que o permita viver por mais de dez anos, se tiramos dele essa possibilidade, é claro que estamos prejudicando esse animal, mesmo que ele não saiba que poderia viver por pelo menos dez anos.

Afinal, nós humanos sabemos e somos nós que o prejudicamos. Logo, não há dúvida de que estamos atuando contra a sua própria inerência – impedindo que ele chegue ao máximo do seu viver, ainda que, na sua subjetividade, possam surgir variáveis.

Há um conflito claro nisso, porque nem as manipulações genéticas eliminam a gritante diferença entre o que é inerente ao animal criado para consumo (a capacidade de viver tanto quanto animais que a maioria da população reprova matar) e o que é imposto a ele (negar o que é inerente a ele).

Na verdade, as manipulações genéticas que aceleram o desenvolvimento desses animais para obtenção de produtos tendem a intensificar ainda mais o absurdo disso, porque tornam ainda mais aberrante a distância entre o potencial de viver e o potencial (por instrumentalização) de, por imposição, tão logo morrer.

Dizer que todos os animais criados para consumo não existiriam se não os consumíssemos é realista, mas isso não serve como argumento para defender que se um animal vive não deve experimentar em toda sua capacidade esse viver. Agir de outra forma é atuar contra o interesse desse animal.

Se ele está vivo, é claro que desejará viver de acordo com sua inerência que nunca deixa de ser conflitante ao interesse humano com fim no lucro e/ou no consumo. Nenhum animal deve viver menos do que poderia viver nem deve deixar de ter seus interesses correspondidos de acordo com seus próprios anseios (e não sendo, quando conveniente, satisfeitos somente porque há um interesse como fim humano).

O fato de tantos animais estarem no mundo somente para serem usados e mortos para consumo não invalida que são animais que, se têm condições de viver muito mais do que isso, é porque esse paradoxo do potencial-imposição reflete também a arbitrária e destrutiva incoerência dessa instrumentalização e exploração.

O animal não humano não deixa de ter como interesse um fim em si mesmo, mesmo quando é impedido de ser um fim em si mesmo. Afinal, ele não troca seus interesses por interesses humanos – ele é submetido a esses interesses.

Observações

A atenção ao sofrimento de um animal nunca deve ser finalidade única na consideração de seus interesses, mas uma parte importante de seus interesses. Seria especista (por um reducionismo irrefletido) atribuir a qualquer animal explorado que seu interesse é unicamente não sofrer. Com isso, pode-se não impor sofrimento a um animal, mas ainda assim validar uma percepção de que não há problema em não atender seus outros interesses. Isso é problemático também porque esses animais têm uma relação de dependência conosco considerando sua condição doméstica.

É preciso rejeitar a afirmação de que um animal estar no mundo para ser explorado e morto é melhor do que não estar, porque essa é uma afirmação usada para garantir a perpetuação do uso de animais como fim no ser humano – ou seja, sua exploração. Jamais diríamos que está tudo bem em usar o argumento de uma suposta e discutível breve boa vida como justificativa para matar animais que não aceitamos que sejam mortos – como cães e gatos. Mas isso é feito com grande frequência em relação a animais que são grandes vítimas da exploração amparada pelo especismo.

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David Arioch Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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