Chamam a atenção os esforços que pessoas que se opõem ao veganismo fazem para tentar fazer parecer que o veganismo é contraditório. Recentemente me deparei com alguém afirmando que “veganos matam mais animais” do que quem se alimenta de animais.
Segundo tal pessoa, veganos financiam mais mortes de animais por meio do processo de cultivo de vegetais. Quem faz essa afirmação ignora que ser vegano sempre foi sobre fazer o que é possível para não prejudicar outros animais, já que precisamos nos alimentar para viver.
Um ponto relevante negligenciado nessa afirmação é que nenhum humano é capaz de viver somente de carne. Mesmo pessoas que se orgulham de um alto consumo de produtos de origem animal consomem carboidratos que são principalmente de origem vegetal.
Quem diz que “não come salada” não deve ignorar que arroz, feijão, pães, massas e muitos outros alimentos que fazem parte do cotidiano dos consumidores de carne são de origem vegetal. Portanto a lógica nos mostra que se veganos participam da morte não intencional de animais, quem não é participa duplamente e com uma esmagadora diferença em mortes de animais. Afinal, uma alimentação com proteína animal baseada na pecuária depende massivamente do cultivo de vegetais para alimentar animais que serão explorados e/ou mortos para consumo.
A pecuária é um sistema notoriamente ineficiente na conversão de recursos, exigindo uma área de cultivo e um volume de vegetais muito superior ao que seria necessário para alimentar humanos diretamente. Não por acaso, a maioria dos grãos (ex: soja e milho) e forrageiras cultivados no mundo é destinada a essa finalidade.
Também é crucial desfazer o comum equívoco de que bovinos no sistema de pecuária extensiva são “criados somente a pasto”. Mesmo nesse sistema, é uma prática quase universal a fase de confinamento, onde o gado é intensivamente alimentado a partir de grãos como milho e soja para atingir “o peso ideal de abate”.
Logo, a dieta onívora está associada a uma quantidade drasticamente maior de cultivo de vegetais e, consequentemente, a um potencial muito maior de mortes indiretas na agricultura, somadas à morte intencional de animais que se alimentam de vegetais. Não podemos esquecer também que muitos peixes criados em cativeiro (aquicultura) também são alimentados a partir de grãos e outros vegetais. Ou seja, isso não envolve “apenas” bovinos, suínos, galináceos e outros animais terrestres criados para fins de consumo.
Além disso, há uma grande diferença entre participar de algo que existe para ser baseado na morte de animais (carne) do que não existe com esse fim (vegetais). Basta considerarmos, por exemplo, dezenas de bilhões de animais que são enviados para o matadouro a cada ano.
Diferentemente de quem se alimenta de animais e não vê problema em matá-los, veganos não escolhem enviar animais para a morte com base em seus hábitos – fazem exatamente o oposto. Enfim, é capciosa a afirmação de que veganos matam mais animais. Também é desonesto comparar, não somente buscando algum tipo de equivalência como tentando ir além em uma lógica distorcida, pessoas que se preocupam com o mal contra os animais com quem antagoniza ou debocha desse tipo de preocupação.
Opor-se ao ato de ingerir animais ou o que é de origem animal tem um poder também simbólico muito grande de oposição ao uso de animais, porque quem faz isso nega-se a reconhecê-los como fim no consumo humano.
Afirmações que visam induzir a uma ideia de que “não faz sentido ser vegano” existem somente para disseminar desinformação e induzir conclusões equivocadas.
Desde sempre viver o veganismo foi sobre fazer o possível para não prejudicar animais e não há lógica em crer que não assumir esse compromisso é “prejudicar menos animais”. Afinal, como desconsiderar seus interesses e ainda criar narrativas para defender isso pode beneficiá-los?
Observações
A dependência do confinamento e dos grãos comprova que a pecuária extensiva pura é um mito na prática contemporânea. O que existe é um sistema híbrido, onde a fase inicial a pasto é, na verdade, subsidiada pela etapa final de confinamento intensivo. Ou seja, o sistema extensivo precisa ser “complementado” pelo sistema mais intensivo para maximizar a produção e atender à demanda em escala industrial. Isso revela que a ineficiência no uso de recursos é uma característica intrínseca e inerradicável da produção de carne bovina.
Sim, há mortes de animais (como insetos, roedores ou pássaros) que podem ocorrer principalmente na agricultura de larga escala. Mas, ainda assim, o cultivo dominante de vegetais (especialmente grãos) no mundo que gera essas mortes é indissociável da agropecuária. Ademais, em relação à alimentação de veganos, se há mortes no cultivo de vegetais que eles consomem, essas mortes são uma consequência trágica, não o objetivo desse cultivo.
O veganismo se fundamenta na “ética do possível e praticável”. Não é uma busca por uma pureza inatingível em um mundo complexo. É um princípio ético de minimizar ao máximo o sofrimento e a exploração animal a partir de todos os meios possíveis em relação com o viver humano. É fazer o que é possível e praticável para não causar danos. Escolher não financiar diretamente uma indústria baseada em uso, exploração e morte de animais é um passo justo e concretizável. Argumentar que “como não é possível causar zero danos, então tanto faz causar danos máximos” é uma falácia do espantalho.
O veganismo é uma posição ética-política que se recusa a tratar animais como meros recursos ou produtos. É uma negação do paradigma que coloca o consumo humano acima da vida e do interesse de outro ser. Esse posicionamento vai muito além de uma contagem simplista de mortes.
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