Disponível na Netflix, “Nonnas” é um filme que favorece uma reflexão sobre a banalização do mal contra os animais a partir do consumo. Na história, há uma cena em que uma das nonas, Roberta (Lorraine Bracco) exibe a cabeça de um cordeiro temperada para ser assada.
Ela explica que trata-se da “capuzzelle”, um prato siciliano que reflete um período de dificuldades econômicas, e que, “para não desperdiçar nada”, aproveitou-se a jovem cabeça ovina para criar um prato.
Enquanto a nona que o prepara não vê nada de errado nisso, outra, Antonella (Brenda Vaccaro), torce o nariz e expressa nojo. O desconforto não é sobre a morte do animal e sim sobre a repulsa gerada pela cabeça que será assada. Além disso, há uma rivalidade entre as nonas, o que pode sustentar ou intensificar o “nojo” por conveniência, não por inerência.
Comer a “capuzzelle” é estar diante do que é real sobre o animal – a morte que não pode ser ignorada como costuma ocorrer em relação à carne comprada em pedaços mais facilmente dissociados do animal. Ainda assim, a nona que a prepara age como se não estivesse diante da cabeça de um animal. É uma cabeça para não ser pensada como cabeça, mas somente um meio para um fim – é carne, ainda que “de cabeça”.
Sua relação com o prato é tão antiga que o apagamento do animal está naturalizado até na cabeça assada ou a ser assada – algo que incomodaria até mesmo muitos consumidores de carne. No caso dela, isso não ocorre porque há um outro nível de desconexão resultante da normalização, já que faz parte de um hábito que remete à sua história familiar, sua origem siciliana.
Mesmo que se fale em cabeça, qual é a percepção de cabeça? Roberta ignora a cabeça como parte importante do corpo de um animal que não desejava tal violência. Claro que se pode dizer que não se mata o animal pela cabeça e sim por outras partes. Mas isso tira o sentido de violência da decapitação? Já que é parte do corpo violado.
O argumento da dificuldade econômica, usado por Roberta, pode ser compreendido pelo ser humano como algo a se relativizar, considerando as limitações financeiras de uma família. Por outro lado, para o animal que será morto não faz diferença os fatores envolvidos na motivação humana para matá-lo, mas sim a experiência de ser morto. Afinal, não podemos ignorar que o que importa para o animal não são os argumentos que culminarão no fim de sua vida, mas o ato de privar-lhe de vida.
A “capuzzelle” também não existiria sem a normalização do consumo de animais. Portanto mesmo quem consome somente o que não lembra o animal, mas sente repulsa pela cabeça, não deixa de favorecer o consumo da cabeça. Afinal, como a cabeça estaria disponível se comer diversas outras partes não fosse um desejo e que motiva reduzir o animal a alimento, a produto?
É o corpo arbitrariamente disponível do animal que favorece outros consumos vistos como “estranhos” até mesmo por quem participa dessa violência, mas rejeita alguns resultados dela porque entram em conflito com o que “é normal e mais atrativo ao seu paladar”.
Em “Nonnas”, Roberta quer que a cabeça de cordeiro seja incorporada ao cardápio do restaurante para o qual foi contratada para ser uma das chefs. Há um conflito com Antonella, mas acabam concordando. E o conflito existe exatamente porque o prato de Roberta é visto como visceral – mas essa visceralidade não existiria sem a normalização do que todas as outras nonas preparam no filme em relação com a violência contra os animais. Ou seja, os pedaços que não têm o mesmo impacto estético.
Quando a cabeça vai ao forno, o dono do restaurante, Joe Scaravella (Vince Vaughn), diz: “Tudo bem. A cabeça já foi. Agora vamos para o molho.” Ou seja, a despersonalização faz com que a cabeça realmente seja tratada como algo que existe para ir ao forno.
Além disso, a cabeça de um cordeiro é a cabeça de um animal que pode ser pensado como criança, considerando sua idade. No entanto, em relação às espécies submetidas a interesses humanos de consumo, o especismo prosperou em neutralizar qualquer consideração sobre isso.
Afinal, se isso fosse profundamente refletido, como essa normalização teria continuidade? E podemos ampliar isso para todos os animais mais submetidos à exploração com fins alimentícios – frangos, porcos, novilhos, etc.
Não que a idade de um animal deva ser um critério sobre quem deve ou não morrer, mas serve como referência para ponderar sobre como o especismo favorece uma cruel naturalização por constantes apagamentos envolvendo tantos animais.
Em “Nonnas”, tudo isso ocorre visando transmitir uma mensagem de esperança, um sentido de trocas, de interações. Há uma valorização das relações humanas, da família. Por outro lado, tudo isso ocorre, se refletirmos sobre o especismo nesse contexto, privando outros animais de suas conexões e relações.
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