Olho para a imagem de um animal prestes a ser degolado para consumo e digo que é um retrato desconfortável de uma realidade não humana. Presto atenção em sua expressão, na posição de seu corpo e reconheço que será mais um junto de outros corpos sem vida.
Então digo que seus olhos miram o sangue no chão e os corpos mortos enquanto um homem amola uma faca e outro mantém-se inclinado para segurá-lo. Atenho-me à sua situação e observo a plataforma que será usada para apoiar sua cabeça, imobilizá-lo e facilitar a degola.
O que relato é passado, porque o animal existe somente como sujeito da minha percepção agora amparada em uma imagem. Ele já foi morto e consumido. Tudo que é não humano que guardo dessa realidade desvaneceu-se enquanto matéria viva. Aqueles corpos desapareceram, o olhar, a maneira como o animal posiciona os pés – o que interpreto como apreensão.
Aquele sangue no chão também se foi. Limparam para receber mais sangue, e depois o limparam outra vez, sem jamais livrar-se dele completamente. Percebo o sangue, da consistência à inconsistência, como o essencial que torna-se o residual espiralado da vida e da morte. A maneira como fixa-se e desafixa-se do chão evoca caminhos que levam aos descaminhos.
Pode parecer alegórico demais, mas a percepção vai além do indivíduo, que é simbólico do que não é fixo, de um trânsito que nunca termina, e que explica por que agora reflito sobre quem já não é um corpo vivo nem morto – somente um vazio, uma ausência, um retrato de uma passagem, de uma chegada e de uma partida.
Já não há nada a ser tocado, e que constitui-se como fragmento de um estar findado. Vem-me uma ideia de cheiros, de passos, de sensações que transitam pelo mesmo espaço de morte. De repente, o animal da imagem já é outro e então outro, e outro, e isso não tem fim.
A coleira no pescoço que recebe a faca pode criar ilusão de sutileza, esmero, estima ou deferência. É só mais um paradoxo. As expressões mudam a partir da mesma representação que também é fragmentação e multiplicação, assim como a posição dos pés, o olhar. Há um reforço de que quem morre agora é outro. E quando já não é outro?
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