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Mataríamos os animais com quem convivemos?

Uma reflexão sobre especismo a partir da série “Yellowjackets”

No sétimo episódio da segunda temporada da série “Yellowjackets”, disponível na Netflix, há uma cena em que um homem diz que Shauna (Melanie Lynskey) deve cuidar de um cabrito o dia todo, como parte de um exercício de autocuidado.

“Então você quer que eu passe o dia todo cuidando desse cabrito e me apegando a ele, para depois, no fim do dia, me pedir para cortar a garganta dele ou alguma coisa assim? Não, obrigada, eu me recuso.”

No que é dito por Shauna há um reconhecimento de que a convivência com o cabrito, que envolve cuidar dele, dificulta uma ausência de empatia. Isso me leva a sugerir uma outra reflexão. Se muitas pessoas que comem animais tivessem de conviver com esses animais para então poder comê-los, a maioria os comeria?

É difícil estimar, mas não há dúvida de que haveria mais humanos abdicando de comê-los do que haveria na ausência dessa experiência. Também acredito que esse número seria maior em relação à recusa em matá-los, que é o que Shauna imagina que terá de fazer com o cabrito.

Além disso, se usamos como o exemplo o cuidado que Shauna deve ter com o cabrito, não é o mesmo cuidado dispensado a quem os cria para matá-los ou para explorá-los e então matá-los. Mesmo quem cria animais para comê-los, evita desenvolver uma relação com eles que não seja voltada para o fim imposto a eles.

Assim há um entendimento de que é preciso estabelecer limites que são ausentes num outro sentido de cuidado que envolve uma interação com o animal que não é sobre comê-lo nem facilitar a experiência de aceitá-lo como um fim na alimentação.

Mais tarde, quando, aos cuidados de Shauna, o cabrito foge do local onde ela o havia mantido amarrado, ela diz enquanto o procura: “Uma coisa é eu esfaquear esse cabrito depois, mas de jeito nenhum ele vai morrer enquanto eu estiver cuidando dele.”

A afirmação de Shauna traz a contradição inerente ao especismo, ou seja, uma crença de que matar um animal não entra em conflito com o próprio sentido de “cuidado”.

Isso ocorre não apenas pelo que pode ser chamado de dissonância cognitiva, mas também pelas apropriações que decorrem do especismo em relação ao sentido das palavras.

Há uma naturalização da ideia de “cuidado” como se pudesse ser pensada como separada de um mal posterior, mesmo que quem reivindique uma afirmação de “cuidado” seja responsável ou participe da morte desse animal.

É como se não houvesse um conflito que colocasse em xeque o sentido de “cuidado”, se o fim subtrai toda uma consideração de “cuidado”. Mas se o cuidado não envolve afastar um mal evitável, que cuidado é esse?

Depois, Shauna diz a Lottie (Simone Kessell): “Não sei qual é a lição aqui, mas eu não vou matar este maldito cabrito.” Mas ela não tem que matar o cabrito, segundo Lottie, o que a deixa aliviada.

Nisso há uma gradação que resulta também do contato com o animal e de pensá-lo desde o primeiro contato como alguém de quem não se deseja o fim, numa percepção que não escapa ao reconhecimento do animal como quem, como alguém.

A questão da proximidade estabelecida entre um animal humano e um não humano que tende a ser explorado para fins humanos, e que serve para pensarmos nossa relação com outros animais, é evidência da diferença que estabelecemos em relação aos humanos.

Afinal, quem diria que para reprovar o assassinato de um ser humano seria preciso conviver com esse ser humano? Entendemos o assassinato como errado, uma arbitrariedade. Porém isso é mais facilmente reconhecido porque o assassinato de humanos é reprovado de uma forma que o assassinato de muitos outros animais não é.

E também porque matá-los sequer é reconhecido como assassinato por ser uma prática permitida legalmente e aceita pela maioria. Isso leva um não reconhecimento de assassinato, mesmo que matar alguém não possa ser dissociado de uma experiência de assassinato, ainda que seja um animal criado para ser explorado.

Outra reflexão também a ser considerada a partir de “Yellowjackets” é que a preocupação de Shauna também pode ser pensada como mais relacionada à conclusão de ela ter de matá-lo (nesse contexto, não se fala em comê-lo), e não propriamente de o animal ser morto.

Assim estaríamos diante de mais um exemplo em que a preocupação baseia-se na própria culpa sobre o mal contra um animal e não sobre o mal em si contra o animal, se a rejeição limita-se à própria ação ou participação.

O que é o especismo?

A crença de que por nos considerarmos superiores aos outros animais podemos usá-los de acordo com nossos interesses.

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

Uma resposta

  1. O tempo me trouxe uma nova consciência de não comer mais animais; vim de uma família onde comíamos a carne do animal, mas nunca matamos e nem tínhamos coragem de ver matar; tiramos muitos animais das ruas, cachorros, gatos, galinhas, patos, cavalos e até sapos e ratos, nossa compaixão por eles sempre foi diferenciada das pessoas da época que descriminavam nossas atitudes, hoje seguimos dando exemplo sempre que possível “animal não é comida”

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