
Com base em um levantamento do World Resources Institute (WRI), 85% dos animais explorados no mundo vivem em sistemas industriais criados no Ocidente. Ainda assim, pessoas de países ocidentais gostam de dizer que países orientais são cruéis com os animais. Usam como exemplo práticas em que não há a falsa romantização da crueldade contra os animais.
O ativismo vegano ocidental também explora imagens que podem fazer com que muitas pessoas achem que o bizarro e o cruel estão longe deles e não como parte de seus hábitos. “Olhe, aquilo é na Ásia! Não é aqui! Está tudo bem”, podem concluir. Ou: “Sim, são violentos! Aqui não é assim.”
Isso pode não ajudar a transformar uma realidade e sim a intensificar o que já é estigmatizado pela percepção normalizada de que a crueldade é o que “está fora” de onde vivemos e não onde vivemos. Não por acaso, encontramos com facilidade pessoas que dizem que pior é o que é feito em outros países, não onde vivem. E usam isso como pretexto para não mudar, ignorando a crueldade inerente à sua própria realidade.
Parte dessa tradição ativista vem também da facilidade em registrar a exploração animal em países do Sul Global ou periféricos (onde é mais fácil negociar esse tipo de registro ou, dependendo da localidade, invadir espaços sem risco de responsabilização legal) – ainda que a conscientização seja voltada a quem sequer vive nesses países, o que revela algo intrigante a se refletir.
Não digo que quem o faz não tem boa intenção, porque claro que tem, mas sequer percebe o viés preconceituoso que reproduz dependendo do recorte que é feito e como isso será lido. Se você usa uma imagem de humanos asiáticos abatendo animais, não espere que os não asiáticos que comem animais como esses interpretem isso como parte de sua realidade não asiática.
Isso pode resultar meramente em uma vinculação de asiáticos à crueldade animal e em uma defesa de sua própria desconexão, ainda que comam muito mais animais do que eles, portanto participam mais da violência contra os animais do que eles.
Se você mostra uma realidade brasileira para um suíço, isso também pode ter o mesmo impacto desconectado. Ele pode demonizar o brasileiro e não contextualizar com a sua própria realidade, ignorando sua participação na subjugação animal e que pode ser muito mais elevada e muito mais frequente.
O brasileiro pode fazer o mesmo, mas dificilmente o fará em relação à Suíça. Seu olhar de reprovação é direcionado com mais facilidade a outros países periféricos e menos aos países mais ricos do Norte Global – ignorando que concentram a maior violência contra animais para consumo a partir da pecuária, conforme dados do WRI.
A internalização da moral ocidental e sua influência global permite isso de uma forma tão recorrente que mesmo muitos ativistas sequer percebem como isso é favorável ao relativismo por conveniência e à rejeição a uma ideia de culpa – mesmo quando a intenção é a universalização da rejeição ao uso de animais para fins humanos.
O ilusório “bem-estar animal” como invenção ocidental, que sustenta que é possível explorar e matar animais prezando pelo “bem-estar” deles, existe mais para “afagar” a consciência humana do que para transformar a realidade dos animais – até porque se quiséssemos realmente melhorar suas experiências e vidas, não os exploraríamos, não os mataríamos nem os reduziríamos a produtos.
É fácil olhar com estranheza para o que ocorre em outro país, como se não houvesse violência contra os animais no seu país e dizer que “aquilo é horrível”. Mas o que é “horrível” se apresenta como horrível exatamente porque não é dissimulado – é verdadeiro em sua expressão de violência. Não estão tentando fazer você acreditar que a violência contra os animais deve ser vista como uma não violência. Não estão romantizando nada.
Isso choca humanos acostumados ao que é culturalmente ocidental porque entra em conflito com uma preocupação que envolve o que é estético e controversamente cristão sobre explorar, matar e comer animais. Isso vem com a crença de que não é preciso pensar em animais, mas somente em alimentos, produtos.
Mas onde a industrialização animal não chegou de forma tão dominante é impossível estabelecer uma completa separação entre consumo e impacto para os animais, como ocorre de forma tão cotidiana hoje em relação a quem está inserido em um contexto onde participar da violência contra os animais por meio do consumo é nunca precisa olhar para animais ou pensar em animais. Há um apagamento que raramente é pensado como crueldade, ainda que seja um brutal reflexo da tecnologia da crueldade.
Não por acaso, a industrialização da morte dos animais surgiu no Ocidente, e sendo liderada pelos EUA, não apenas com o propósito de “ser eficiente”, mas também de preterir o sentido de crueldade. É como dizer que “cruel é quem não usa nosso sistema, porque nós que determinamos o que é ou não crueldade” – mesmo que esse sistema envolva descarte de animais após o nascimento, separação de mães e filhos, isolamentos, mutilações e supressões de comportamentos naturais.
Como negar a crueldade que surge como negação do animal na forma de um produto? Na crescente preparação industrial para ser um produto? Isso permite também pensar em animais que estão se desenvolvendo cada vez mais rápido para serem mortos mais cedo – como frangos que na década de 1950 levavam 85 dias para atingirem 1,5 quilo e hoje são abatidos, em média, com 35 dias e 2,5 quilos, conforme dados da revista científica Poultry Science. Isso tem feito com que cada vez mais animais morram de infarto porque seus órgãos não acompanham o crescimento.
Podemos citar também os porcos que, hoje, têm, em média, o dobro de peso de seus ancestrais e, em decorrência disso, cresce o percentual de animais que sofrem de osteocondrose (doença articular degenerativa), claudicação (manqueira) e de fraturas, além de baixa resistência ao calor e problemas reprodutivos, de acordo com levantamento da Compassion in World Farming (CIWF).
A manipulação genética descaracterizou todos esses animais de uma forma que se tornaram outras criaturas em comparação com seus ancestrais. E esses animais vivem uma realidade conflituosa. Afinal, se desenvolvem em decorrência do que não é determinado por eles, e que os distancia dessa ancestralidade, ao mesmo tempo em que não deixam de ter interesses em comum com seus ancestrais e que entra em conflito direto com essa forma cruel de viver para logo morrer.
Para citar somente mais alguns exemplos, a musculatura dos frangos hoje mais consumidos no mundo cresce três vezes mais rápido que seus ossos, uma desproporcionalidade que leva a fraturas e deformações, conforme dados publicados nas revistas científicas Poultry Science e PLOS One.
Além disso, as vacas hoje produzem dez vezes mais leite que suas ancestrais, resultando no aumento de infecções dolorosas como as mastites crônicas, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). E que tal lembrarmos que hoje a maioria dos ovos consumidos no mundo são provenientes de galinhas que foram manipuladas geneticamente para botar de 300 a 320 ovos por ano? Enquanto suas ancestrais botavam de 20 a 30 por ano.
A normalização disso é um equívoco e uma crueldade e serve também para questionar a ilusão das galinhas “criadas livres” ou “soltas”, já que a crueldade é determinada antes mesmo do nascimento. E esses exemplos são representativos não de uma pequena realidade, mas da dominante realidade da criação de animais para consumo que está em expansão global.
Não há maior apagamento desses animais do que nas relações de consumo que se intensificaram com a industrialização do uso de animais no Norte Global e que foi exportado para tantos países do Sul Global – determinando também que não adotar tais práticas é “intensificar a própria marginalização econômica ou atraso produtivo”, ou seja, “ficar para trás”. Isso piora ainda mais o estado de consideração dos animais, porque os coisifica de forma ainda mais extrema. Eles passam a ocupar espaços que no passado eram destinados somente a coisas, ao que não tinha vida – como as linhas de produção fabril.
Assim como a própria ideia de invenção do “processo civilizatório”, reivindicada e enaltecida pelo Ocidente como inerente ao “progresso”, isso trouxe também a industrialização do uso de animais que favoreceu a desconexão entre humanos e outros animais. Nessa lógica, o que é “mais civilizado” é exatamente e brutalmente incivilizado. Essa contradição é pouco observada por causa da normalização da ideia de que “é o melhor para os animais”, mas sem que haja consentimento desses animais. E como poderia haver se é sobre privação de interesses, violência e morte? E como parte da lógica especista, o animal que já não é útil vivo deve ser morto para “não gerar somente despesas”.
Enfim, não ver o que ocorre com os animais, não saber como viveram e de onde vieram, tudo isso é parte de um apagamento negado como crueldade, e que é uma potência ainda maior como crueldade. Nunca tantos animais foram criados e confinados para consumo como atualmente, e com a maior parte deles sendo consumidos no Ocidente, de acordo com a FAO (2023), de onde pessoas gostam de apontar para a crueldade animal fora do Ocidente.
Portanto, seus consumidores participam da maior parte da violência contra animais nos matadouros, assim como também as financiam em outros países de onde compram produtos. Não que isso deva eximir pessoas de qualquer país do Sul Global que também participam desse tipo de consumo, já que para o animal como vítima o fato de ser explorado e morto já entra em conflito com seus interesses, independentemente de lugar e sistema. Mas trago isso para a discussão para desmontar a “lógica” de depreciação da crueldade animal fora do Ocidente.
O que o Ocidente fez foi apenas mascarar a crueldade, camuflá-la, oferecer um aparato de dissimulação, para preservar ou impor a percepção de “bárbaro” e “atrasado” em relação ao tratamento dos animais somente quando praticado pelo “outro” – como podemos perceber também nos exemplos tão comuns de hipocrisia de pessoas que consomem alimentos e outros produtos de origem animal, mas dão-se o direito de repudiar a exploração animal em países periféricos, porque esteticamente lhes é mais desagradável, vista como “bárbara”, “atrasada”, “inadmissível”.
Mas o que é feito com animais nos países de alta renda não é “bárbaro” nem “atrasado”? Se concluímos que não, é porque acreditamos na propaganda gerada pela industrialização do uso de animais, que impõe ainda mais privação e a muito mais animais porque é consequência tanto da eficiência na busca pelo lucro quanto de uma demanda cada vez maior de consumidores por produtos de origem animal (algo que não seria possível suprir hoje sem a industrialização) – e que também supera de longe a realidade dos países periféricos.
EUA, Canadá e Austrália, além da União Europeia, consomem de três a cinco vezes mais carne per capita que a média global, conforme relatório do World Resources Institute (WRI). Se todos os países do mundo comessem animais como os países de alta renda, a violência contra animais a partir da alimentação seria tremendamente maior.
A FAO estima que a produção de carne teria mais do que dobrar. E os efeitos das emissões globais de carbono decorrentes da pecuária aumentariam em 70% a 100%, agravando impactos ambientais e prejudicando muito mais animais, não somente humanos. Se a realidade hoje já é absurda, já que falando apenas da pecuária, isso quer dizer mais de 80 bilhões de animais mortos por ano, segundo dados da FAO, e a maioria sendo consumida no Ocidente, como ignorar que o grosso da exploração animal nas relações de consumo não se concentra nos países periféricos?
Trago essa reflexão e esses dados também para mostrar como faz pouco sentido alguém que vive em um país de alta renda, ou que tem um alto consumo de carne, se preocupar em registrar ou expor a realidade em países periféricos que consomem bem menos carne. Não é sobre dizer que a realidade não deve mudar nesses países, mas chamar a atenção para a importância de manter o foco no local.
Se vivemos em um país onde tantas pessoas participam regularmente da violência contra animais, olhar para outro país que participa menos disso faz menos sentido. E pode, como já observei, estimular uma interpretação equivocada e conveniente, que faz as pessoas ignorarem graves problemas locais de exploração animal para demonizarem o que ocorre em outro país – o que é muito comum.
Ademais, a exploração estética da exploração animal pode criar ilusões de romantização – porque inverte a lógica do que é pior ao ilusionar o que parece pior. Mas essa estética, que faz acreditarmos que explorar e matar animais não é tão ruim, existe também para negar o que é real para os animais.
Quando acreditamos nisso, tendemos a ver o que está fora disso como “pior”, como “bárbaro”, ainda que sequer seja realmente pior do que o que está mais próximo de nós, e que sequer seja representativo de uma realidade maior de consumo. A romantização da violência a partir de práticas industriais em si já é um ato de crueldade, e impacta nocivamente muito mais animais do que qualquer outro sistema.
Enfim, é preciso repensar o modelo de ativistas que vivem em países de alta renda onde a violência contra animais por meio do consumo é muito maior, e influencia a realidade em tantos países por meio do que é determinado pelo capitalismo, mas que se preocupam em expor a realidade de outros países, principalmente periféricos. Eles não deveriam se focar em mudar a realidade de onde vivem se atinge mais animais e se é de onde parte a influência para piorar e intensificar a produtificação animal em outros países?
Não que não seja importante que cada país participe da transformação contra a exploração animal, mas parece que quando temos grandes problemas onde vivemos, mas achamos coerente apontar para os problemas dos outros, e que podem ser piorados pelos nossos, podemos ser negligentes, além de reforçar uma ideia que pode ser explorada como se o “outro lugar” fosse pior do que o “nosso”, quando sequer isso é verdade em números.
Não é difícil perceber como é fácil e confortável para muita gente demonizar algo de longe, ainda mais se o longe permite uma inconsideração por distanciamento. Claro que isso não faz parte da intenção de nenhum ativista que visa combater o especismo, mas é notório que favorece conveniências para quem não quer mudar e pode favorecer ficções sobre quem parece impactar mais na vida dos animais e de forma mais inaceitável.
Claro que se vivêssemos em um país onde não houvesse crueldade contra os animais, seria mais lógico usar nosso próprio exemplo para tentar motivar os outros, afinal, já teríamos transformado a nossa realidade. Mas se vivemos em um país onde a exploração animal é extremamente grave e queremos dizer a pessoas de outros países que elas devem mudar, isso soa estranho e contraditório, porque trocamos a urgência do que é local para discursar sobre o que não é local.
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