
Afirmar que o veganismo “de verdade” só pode existir na conexão com outras lutas não é a verdade do veganismo. O veganismo existe independentemente da interseccionalidade, assim como qualquer outra causa. Isso não é sobre desmerecer a interseccionalidade ou não ver relevância nela.
Mas há um problema quando se condiciona o veganismo à interseccionalidade, como se o veganismo só pudesse existir “de verdade” a partir dela. Nem mesmo estudiosas da interseccionalidade como Patricia Hill Collins ou Sirma Bilge defendem que a interseccionalidade deve ser uma condição e não uma abertura para o diálogo, consideração e troca entre causas.
É relevante sim dialogar com outros movimentos, já que precisamos também gerar proximidade para ser ouvido à medida em que ouvimos o outro. Mas isso é bem diferente de defender as intersecções como se o veganismo dependesse delas para ganhar um “sentido real e de verdadeiro valor” – como se não existisse como inerente ao próprio movimento.
Defender que o sentido do veganismo está na conexão com outras causas é como dizer que o veganismo não tem um sentido suficiente por si mesmo. Mas quem diz isso sobre outros movimentos? Que só ganham uma genuína dimensão de valor nas intersecções com outras causas? Em relação ao veganismo, condicioná-lo a outras causas não escapa à percepção de que isso ocorre porque é sobre não humanos, como se não se bastasse em si, como se faltasse algo.
Por outro lado, a troca é importante porque o veganismo para gerar grandes transformações precisa chegar ao maior número possível de espaços – precisa fazer sentido para o maior número possível de pessoas, e isso também torna importante o diálogo com outros movimentos.
Quem defende o veganismo interseccional pode dizer que sua abordagem é mais inclusiva por envolver também outras causas, mas, na prática, isso está mais relacionado a dialogar com pessoas que pensam como você, que valorizam as mesmas causas que você ou que têm predisposição a elas. E os outros?
Em relação aos outros haverá, claro, um processo de exclusão. Então o que problematizo agora é que será que é benéfico para os animais defendermos que não há problema em não contarmos com quem não compartilha os mesmos valores que nós em relação a outras questões, ainda que possam ser aliados na oposição ao especismo?
Pode ser difícil lidar com determinadas diferenças, mas imagine um cenário em que você encontra um grupo disposto a dialogar sobre veganismo, mas é formado por pessoas que não apoiam discursos anticapitalistas. Considerando uma posição vegana interseccional, então seria melhor virar as costas e concluir que a mudança dessas pessoas não nos fará falta? Se são pessoas que poderiam ajudar a reduzir o abate de animais ao mudarem seus hábitos de consumo, faz sentido crer que isso não favoreceria os animais?
A interseccionalidade pode criar uma ponte com pessoas que defendem causas humanas e que nunca consideraram o veganismo. Por outro lado, se o discurso vegano interseccional for colocado como condição para pessoas não veganas, e que têm outros valores, o apelo de aproximação com o veganismo a partir dessa abordagem será rejeitado.
É sempre tentador acreditar que é melhor atrair para o veganismo somente pessoas que pensam como nós, mas, reconhecendo que a população vegana ainda é pequena, não vejo como isso pode ser boa ideia para gerar grandes transformações em oposição à exploração animal e ao especismo.
O veganismo depende sim da pluralidade e das diferenças para crescer. Uma homogeneização não apenas seria impossível no movimento vegano como excludente, já que não comportaria diferenças em um mundo de diferenças.
Um exemplo que também pode ser usado para refletir sobre o veganismo é que, segundo a pesquisa Panorama Político, realizada pelo Senado em 2022, a maioria dos eleitores brasileiros não se identifica como de esquerda, direita ou centro. As pessoas não se veem em espectros – a maioria não tem esse tipo de identidade política.
Então se digo que só faz sentido alguém ser vegano se for de esquerda, está tudo bem se muitas pessoas concluírem que o veganismo não é pra elas porque elas não se identificam como de esquerda? Se o movimento vegano ainda é pequeno, será que isso aumentará se exigirmos mais das pessoas? Concordâncias em relação a todos os nossos valores.
Isso não impede ninguém de pensar o veganismo a partir de outras questões e vice-versa, de problematizar tudo que quiser problematizar, mas quando isso ganha uma forma em que condicionamos o veganismo a outras questões, o impacto de “um amplo pacote de concordâncias ou exigências” é inevitável.
Há veganos interseccionais que tentam fazer parecer que não interseccionais são “incompletos” ou “menos veganos”. Essa é uma visão que favorece o especismo que o veganismo existe para combater. Se o veganismo for pensado como “insuficiente” em si, então é porque o veganismo está sendo tratado, mesmo quando isso ocorre de forma irrefletida, como “apêndice” de outras causas.
Há alguns anos, veganos interseccionais reprovaram a tentativa de proibição do chamado sacrifício religioso de animais no Brasil por alegar que isso era “neocolonialismo”, que era uma forma de silenciar grupos marginalizados. Por mais que o ideal é que mudanças ocorram sem qualquer tipo de proibição e partindo de dentro, e que seja hipócrita condenar esse tipo de prática e ao mesmo tempo não outras que resultem na morte de bilhões de animais, podemos lembrar que para um animal não faz diferença a motivação que está resultando em sua morte e sim que ele está sendo morto. Afinal, um animal aceita melhor a morte por ser para um sacrifício ritual?
A marginalização nesse processo é uma construção humana da qual o animal não humano não participa a não ser como “outro”, e que por ser esse “outro” pode ser pensado em segundo lugar, ainda que seu interesse seja vital e em conflito com um interesse não vital.
Também já testemunhei veganos interseccionais defendendo o fim do comércio e consumo de carne de cachorro e de gato no Festival de Yulin. Isso não foi visto nem chamado de “neocolonialismo” – ainda que fossem brasileiros dizendo o que chineses devem fazer. Isso expõe seletividade na aplicação dos princípios interseccionais.
Ou seja, dependendo de quais causas escolhemos defender ou com quais temos mais proximidade e afinidades, há ou não espaço para relativismos. Portanto não há uma uniformidade e sim uma conflitante e contraditória seleção do que deve ou não ser considerado com base em anuências culturais.
Quando pensamos o veganismo interseccional é perceptível também que há uma grande cobrança da movimentação do veganismo em relação a outras causas ao mesmo tempo que isso não ocorre de outras causas em relação ao veganismo – externando o que ainda parece mais uma unilateralidade.
Isso faz parecer que a causa vegana é que precisa se “completar” – que a causa não humana precisa se conectar com causas humanas defendidas por sujeitos que, se não veem relevância no veganismo, é porque acreditam que não há motivo para fazê-lo, mesmo que o veganismo seja sobre combater um sistema opressivo que explora, mata e impacta em tantas criaturas vulneráveis e invisibilizadas.
Isso se reflete, por exemplo, em uma defesa de que idealmente a esquerda deveria abraçar a oposição à exploração animal, pela conexão de seus sujeitos com o combate a opressões, e sabemos que não é isso que ocorre em relação à maioria. E muitos não parecem dispostos a rever essa posição.
É um retrato que mostra ainda mais a urgência de não ignorar que o diálogo não pode se dar somente com base nas semelhanças, no compartilhamento de valores que podem não resultar em proximidade com o veganismo. A resistência existe mesmo quando as pessoas podem compartilhar diversos valores, com exceção do que é relevante ao veganismo – portanto tão problemático aos seus objetivos.
Se a interseccionalidade no veganismo resultar em fechamentos, pelo que se exige das pessoas para serem reconhecidas como veganas (a condição em vez do diálogo), ela se torna excludente em vez de inclusiva e favorece a “cultura de bolha”, da qual o veganismo precisa se afastar para realmente crescer. Por isso, o caminho é a troca, o diálogo, a interação – não o condicionamento ou exclusão por apropriação. A interseccionalidade no veganismo deve ser um meio para criar pontes, não para impor condições ou restrições, já que o veganismo é determinado pelo seu próprio sentido e princípios.
Observações
Será que todos os veganos que se intitulam interseccionais realmente atuam em causas humanas ou ajudam humanos oprimidos? Porque se isso não for uma realidade, se alguém se intitula interseccional, mas não milita realmente em nenhuma causa humana, não desenvolve nada que realmente favoreça humanos, então isso é somente performar identidade. E sendo assim, pode externar um jogo de “superioridade moral”, não uma prática real de solidariedade. Esse é um ponto que também trago como problematização porque o “ser vegano” tem sua própria coerência já no viver em oposição à exploração animal – como não consumir o que é de origem animal nem participar de algo favorável ao especismo. Já as contribuições às causas humanas dependem de outras dinâmicas de envolvimento.
Outro ponto para reflexão é que se um vegano interseccional estiver envolvido com várias causas, e a vegana for regularmente secundarizada por seu ativismo em alguma causa humana, ele estará priorizando uma causa em detrimento de outra. Essa também é uma preocupação, considerando os problemas que trago nos artigos “Movimento vegano tem alta desistência de ativistas” e “Como o ativismo vegano pode encolher nos próximos anos“.
Se uma pessoa vegana de esquerda preferir falar sobre causas humanas com pessoas de esquerda do que sobre veganismo, é provável que ela não fale sobre veganismo – fazendo um “ativismo de conforto” e que não favorece o veganismo.
Hierarquização implícita das causas – Mesmo em círculos que defendem a interseccionalidade, causas humanas ainda tendem a ser tratadas como prioritárias, favorecendo a ideia de que o especismo é um problema secundário.
A interseccionalidade deve ser um convite, não uma imposição.
A interseccionalidade deve ocorrer a partir de valores em comum, não de exigências.
É importante mostrar para pessoas que lutam por causas humanas que envolvem opressão e dominação que o veganismo também combate opressão e dominação.
Se o veganismo exigir adesão a todas as lutas da esquerda, como ele crescerá entre tantas pessoas que não são de esquerda?
A galinha no matadouro não quer ser degolada, independentemente se quem a defende é anticapitalista.
O especismo é um sistema de opressão independente (mesmo quando entrelaçado com outras formas de dominação).
Se alguém rejeita veganos conservadores ou que não se identificam como de esquerda está abrindo mão de aliados potenciais que poderiam ajudar a diminuir o consumo de produtos animais e, portanto, a morte de animais.
A oposição à exploração animal precisa se tornar um princípio transversal.
No livro “Anticapitalismo Romântico e Natureza: O Jardim Encantado”, do pensador marxista brasileiro Michael Löwy, em parceria com Robert Sayre, o anticapitalismo é pensado a partir da vivência de figuras conservadoras que antagonizaram o capitalismo especialmente pelo que as ações do capitalismo já significavam como impacto na natureza. Ou seja, os autores deslocam o pensar o anticapitalismo também para fora da esquerda.
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