
Temos o direito de matar um animal porque o tratamos “bem”? Na série “Pluribus”, Ana (Karolyna Wydra) admite a Carol (Rhea Seehorn) que é apenas uma questão de tempo até ela “se tornar um deles” – o que significa perder sua autonomia e individualidade. Não é uma questão de “se” e sim de “quando”.
Por isso, enquanto Carol vive como uma das poucas humanas não afetadas por uma onisciência que surge com um suposto vírus alienígena que opera pluralmente uma consciência homogênea, já que todos partilham dos mesmos interesses e pensam da mesma forma, eles dão a ela tudo que ela quer, acreditando que isso a fará se “sentir bem”.
A fantasia do controle: quando “sua vida é sua” é uma mentira
Carol pode ter a melhor comida, por exemplo, e várias vezes levam até ela alguma refeição que marcou um momento de sua vida. Ana também lembra Carol várias vezes que “a vida dela é dela”.
Isso, claro, opera uma contradição, já que Carol, ainda que tente viver para manter-se como a sua própria, não poderá ser se o imperativo que surge primeiro com a contaminação prevalecer sobre seus interesses.
Se isso é uma questão de tempo, e Ana sustenta que isso ocorrerá em breve, porque estão trabalhando para que isso ocorra, a ideia do reconhecimento de que “a vida de Carol é de Carol” soa nesse contexto tão fantasiosa quanto a vida de um animal criado para consumo ser do próprio animal se há um interesse que opera contra isso e que existe para prevalecer sobre isso.
A “bondade instrumentalizada”: um processo para um fim
A maneira como Carol é tratada também pode ser comparada a animais criados para consumo e outros fins humanos. O “bom tratamento”, quando existe, ou supostamente existe, é parte de um processo para um fim, assim como é o bom tratamento recebido por Carol.
Eles querem vê-la bem, não por quem ela é hoje, mas por quem ela se tornará contra a sua própria vontade – um fim nesse interesse que acreditam que é um fim do qual ela não pode escapar. Logo, a arbitrariedade é dissimulada de uma forma que nos permite paralelizar com o chamado “bem-estar animal” em relação a um animal criado para morrer; para ser despedaçado e comido. O “bom tratamento” é uma ferramenta de gestão, não um reconhecimento de direitos fundamentais.
Em “Pluribus”, podemos reconhecer o horror da “bondade instrumentalizada” – criada para negar a consequência disso para quem é alvo dessa “bondade”. Afinal, o que Carol vive em relação a isso é também um mal comum operado contra tantos animais. A série, por meio da relação entre Ana e Carol, explora a ideia aterrorizante de que a aniquilação do self (o ser a si mesmo) pode ser administrada com a mesma lógica eficiente, controlada e aparentemente “humana” (ou pós-humana) com que tratamos outros seres vivos que consideramos meios para os nossos fins.
Na linha de montagem: o humano e o não humano
Quando Ana diz que Carol pode se tornar um deles em questão de semanas ou meses, isso favorece ainda mais essa comparação entre humanos e não humanos porque esse é o tempo que leva para que a maior parte dos animais criados para consumo no mundo hoje sejam mortos. A maioria não vive mais do que meses se pensamos principalmente em frangos e porcos.
Portanto, a fala de Ana coloca Carol em um cronograma de produção que inclui agir para minar sua resistência – algo que também é aplicado diariamente contra tantos animais usados nas nossas relações de consumo.
Ana justifica o processo com a ideia de que é “inevitável”. Essa é a mesma desculpa usada para justificar o abate de animais: “é o ciclo da vida”, “é a natureza das coisas”, “eles foram criados para isso”. É uma “profecia autorrealizável”: criamos o sistema que faz com que esse fim seja pensado como inevitável e depois usamos a suposta inevitabilidade (que é uma invenção) para justificar o sistema.
O abate do indivíduo: morte do ser vs. morte do corpo
Carol não é reconhecida como um ser com um futuro aberto e infinitas possibilidades; é reduzida a um projeto com um prazo de conclusão – o mesmo ocorre com tantos animais e sem que recebam qualquer consideração da grande maioria dos humanos. Podemos perceber também que o incômodo em relação ao que é operado sobre Carol não existe em relação ao que é normalizado diariamente envolvendo milhões de animais só no Brasil.
Sim, persiste também a diferença de que o corpo de Carol não morrerá, mas ela será morta como indivíduo – tirando-lhe autonomia, individualidade, enfim, o que a constitui unicamente como indivíduo. Carol é um meio para um fim (a expansão da consciência plural que, paradoxalmente, reflete uma única vontade que opera sobre todos), assim como um porco é um meio para o fim (alimentação).
Mas o “abate” dela é metafórico, ainda que também aterrorizante, já que ela seria um fantasma em seu próprio corpo, um simulacro de sua antiga vida. Sua morte como indivíduo ocorreria no momento em que o produto (o corpo e a memória) fosse finalmente integrado à linha de montagem da consciência coletiva. Já a determinação última sobre a realidade de um animal criado para consumo, sabemos que é visceralmente destrutiva em relação à sua própria condição corpórea – ele desaparece como se nunca tivesse existido.
A agência suprimida: a “engorda psicológica” e a rendição
A luta de Carol é pela preservação de si como indivíduo contra uma sociedade que quer dissolvê-la como indivíduo. Portanto, qualquer “gentileza” ou concessão no ínterim é apenas uma estratégia para facilitar a transição e minimizar a resistência. É uma forma de “engordar” sua aceitação psicológica, assim como se engorda um animal para “obter um produto de melhor qualidade”.
Ela será somente mais um corpo compartilhando de uma mesma consciência desencadeada pelo suposto vírus alienígena, e que poderá preservar memórias. No entanto, sua individualidade se diluirá nisso, sendo não mais do que um corpo habitado pluralmente, maquinalmente, e tendo sua precedente constituição como vivente como não mais do que uma passageira, que é também uma espécie de simulacro – ou seja, é “o estar à deriva de si mesma”.
Afinal, quando a autonomia e a individualidade não operam como força que constitui o próprio indivíduo, é porque o indivíduo é abstraído de ser seu próprio indivíduo, mesmo que habite um mesmo corpo – o que é uma visceralidade corpórea da metáfora do ser que não pode ser porque é impedido de ser.
O que nos constitui como indivíduos não é apenas a memória, mas a capacidade de agir no mundo com base em uma vontade própria, de fazer escolhas, de errar, de mudar de ideia. É a nossa agência. Carol está sendo progressivamente privada disso, não por correntes, mas por um ambiente perfeitamente manipulado para levar à sua rendição.
Animais submetidos aos interesses humanos de consumo também estão o tempo todo tendo sua agência suprimida, ignorada e negada – e a violência operada contra eles ocorre de forma menos sofisticada, sem metáforas.
Imperialismo biológico: a ética como contaminação
É perceptível como “Pluribus” explora a metáfora da homogeneização do pensamento, do ser. Isso entra em conflito direto com as defesas ideológicas quando não permitem diferenças e as veem, na visceralidade colocada pela série, como “uma falha de design”.
Por isso também que a forma de ser plural e que é homogênea em “Pluribus” é tratada também como “imperialismo biológico”. É como se a individualidade em si fosse algo a ser extirpado – no renascimento para uma nova condição biológica.
Também há um momento na série em que Ana lembra que agora quase todos são vegetarianos (e em breve todos) e se opõem à matança de animais. Isso surge na série como “contaminação”, o que pode levar espectadores a enxergarem uma crítica específica.
Mas se compreendemos que a oposição ao mal causado aos animais não humanos depende da consideração de cada indivíduo sobre a implicação disso (não podemos obrigar uma pessoa a parar de comer animais, mas apenas apresentar razões para que ela reflita sobre o mal disso para os animais e considere uma mudança), esse momento da série funciona mais como um superlativo para criticar de forma ampla a perda da liberdade individual em geral – logo, atuando também como uma metáfora. No entanto, não deixa de favorecer uma provocação: “Se pudéssemos, faríamos?”
Observação
“Pluribus“, de Vince Gilligan, criador de séries como “Breaking Bad” e “Better Caul Saul“, está disponível na Apple TV+.
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