Opinião

Jacaré, mais um animal reduzido a alimento

Acredito que é mister não ignorar que essa indústria mata animais privados de seu habitat, (Fotos: Reprodução)

Corumbá, no Mato Grosso do Sul, tem o terceiro e maior frigorífico de jacarés do Brasil, e com o aval e apoio do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Assim como outros animais, do jacaré não se aproveita apenas a carne, mas tudo, inclusive os olhos. Por dia, só um dos frigoríficos da Caimasul tem capacidade para abater 600 animais por dia. Isso representa 65 mil quilos de carne de jacaré por mês.

Interessa a quem algo assim?

Estamos falando de uma carne que pode custar de R$ 50 a R$ 96 por quilo ou mais dependendo do corte, da origem e do açougue. Logo, além da exploração desnecessária e da crueldade legitimada, interessa a quem algo assim? Quem tem condições de pagar por isso? Não é difícil interpretar que essa oferta vai ao encontro de uma demanda específica, que se volta para a exportação e para uma pequena camada da sociedade com maior poder de compra.

Atualmente, nas maiores cidades do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, o jacaré já é visto por muita gente como alimento, assim como o boi, o porco e o frango. Não é incomum encontrar pedaços de jacaré em açougues e mercados. Normalmente, estão reduzidos à ponta de cauda, filé de cauda, filé de lombo, filé de dorso, filé mignon, coxa, sobrecoxa, linguiça e iscas. Uma cooperativa de criadores de jacaré alega que a iniciativa visa a conservação do meio ambiente e a preservação da espécie.

Incentivando novos hábitos e comércio ilegal

Mas será mesmo que criar milhares de animais em cativeiro, em baias e galpões, e manter um ritmo de alta produção é uma medida que visa realmente o bem-estar da espécie? O que eles pretendem fazer quando a demanda dobrar, triplicar ou quadruplicar?

Ou até mais do que isso. Afinal, eles estão incentivando novos hábitos na população, e também a ideia de que o Pantanal é território fértil para esse tipo de exploração, assim como a Amazônia, onde só na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) de Mamirauá se fala no abate de 100 mil animais por ano.

Além disso, essa demanda também pode estimular naqueles que veem nisso um bom negócio, mas não têm condições de investir formalmente e legalmente na área, o interesse pela comercialização ilegal de carne de jacaré, que pode ter um custo até quatro ou cinco vezes menor. Ou seja, surge aí um estímulo para que mais animais silvestres sejam mortos para atender a uma demanda que deve crescer de forma substancial.

Preservação ambiental deveria envolver abate e consumo?

Precisamos considerar também o fato de que esses animais estão sendo criados fora do seu habitat. Se o foco é a preservação ambiental, então por que matá-los e reduzi-los a alimentos? Se a ideia é o controle populacional, por que eles são condicionados a se reproduzirem em cativeiro? Enfim, se há uma superpopulação de jacarés, e eles devem ser supostamente abatidos, a situação chegou a esse ponto por negligência e interferência humana.

Vivemos em um mundo com mais de 7,7 bilhões de pessoas, e onde mais de 870 milhões de seres humanos sofrem de subnutrição crônica, mas temos um péssimo costume de culpar outras espécies por nossas falhas e concupiscências. A comercialização de carne de jacaré é um exemplo disso. Transformamos um animal selvagem em bode expiatório, extraímos o máximo que pudermos dele para gerar lucro, e esse lucro não é redistribuído nem mesmo direcionado à recuperação do meio ambiente.

Acredito que é mister não ignorar que essa indústria mata animais privados de seu habitat, habitat este que não pertence a ninguém, a não ser à própria natureza. E os espólios de suas mortes são celebrados por uma pequena parcela da população com maior poder aquisitivo. É justo isso?

David Arioch S.A. Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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