
A superestimação do mercado: entre a fé cega e a afirmação de cooptação
Já argumentei em outros textos sobre os limites do foco em produtos veganos e a incapacidade do mercado, por si só, de gerar transformações favoráveis ao veganismo. O presente artigo é um movimento complementar e necessário: se por um lado é um erro depositar no mercado a grande esperança da mudança, por outro é um erro igualmente grave atribuir a ele um fausto poder de “cooptação”, que desvia a responsabilidade do verdadeiro campo de batalha, que é o cultural. Ambos os erros partem de uma superestimação do poder do mercado.
A falha lógica: cooptação pressupõe uma estratégia intencional
O problema na afirmação de que o mercado está cooptando o veganismo é que isso quer dizer que o mercado tem tal intenção em relação ao veganismo. É algo que entra em conflito com a realidade, já que cooptação pressupõe uma estratégia intencional de um grupo para absorver ou esvaziar a força de outro, neutralizando-o. Mas mesmo o mercado em que se insere as grandes corporações não tem um projeto contra o veganismo. O mercado não se importa com o veganismo, mas com a venda de produtos baseada em mudanças de interesses de consumo.
O que o mercado vê são consumidores dos produtos que ele oferece; e esses produtos surgem com base em uma mediação de consumo – a partir das mediações decorrentes de um movimento dos consumidores em direção ao mercado. São eles que criam uma nova cultura de consumo, mesmo quando ainda bem limitada.
Da indústria cultural às mediações: superando uma visão ultrapassada
Se novos produtos veganos fossem consumidos somente por não veganos, para o mercado, o retorno seria o mesmo – o lucro. Eles estariam vendendo do mesmo jeito. Logo, a cooptação só faria sentido se o impacto fosse ativamente direcionado a uma apropriação do veganismo. Mas o mercado é em si agnóstico e amoral porque ele opera de acordo com um fim bem claro que é o lucro.
Essa visão que atribui ao mercado um poder quase absoluto de definir significados e corromper movimentos repete, no campo do ativismo vegano, um viés já criticado e superado na própria teoria crítica: o modelo da “indústria cultural” da primeira geração da Escola de Frankfurt, que via as massas como receptáculos passivos da dominação cultural.
Contra esse modelo, autores como Martín-Barbero propuseram uma análise das mediações, em que o consumo é também um ato de produção de sentido por sujeitos ativos. Ao insistir na noção de “cooptação”, corre-se o risco não apenas de um erro estratégico, mas de uma regressão teórica que desarma o movimento ao desprezar a própria agência cultural daqueles a quem se pretende representar.
Efeito colateral, não projeto estratégico: o mercado disputa pelo sintoma, não pelo cerne
As consequências que podem ser lidas como negativas para o veganismo a partir do mercado não surgem de um projeto estratégico, mas como um efeito colateral de processos cuja origem última está nas significações criadas fora do mercado, no movimento vegano, no campo da cultura – no conflituoso território das mediações, conforme a conceituação de Martín-Barbero, herdeiro da tradição analítica de Gramsci. Por isso, o antagonismo direcionado ao mercado constitui uma disputa pelo sintoma, em um campo superficial, e não pelo cerne do poder: a disputa pela hegemonia cultural, que é onde os significados são de fato gerados e disputados.
O mercado não cria os significados, ele utiliza os já existentes para oferecer produtos. Mesmo quando determinados consumos são associados a “estilo de vida” e há vinculações com o que não é ético, isso não surge com o mercado, mas com o que o precede – e que pode ser o próprio movimento vegano, já que o mercado apenas se foca estritamente nos “atributos” dos produtos para tentar alcançar um grupo diverso de consumidores. Ademais, o sentido mais importante é aquele atribuído pelos consumidores, já que nenhum produto prevalece ao consumidor. Portanto, os consumidores também têm o poder não apenas de significação como de apropriação.
Claro que nesse processo o mercado pode oferecer produtos que levem a uma ideia de que o veganismo é inacessível, e isso também não ocorre sem o sentido desses produtos fora do mercado, já que não há oferta sem demanda. E a ideia do “inacessível” pode surgir mesmo quando produtos são lançados como “plant-based”, “à base de vegetais”, “à base de plantas”, etc – que é uma estratégia terminológica que já surge por dissociação com o veganismo. Há nisso, uma estratégia de fuga da narrativa e não seu controle – outro ponto em conflito com a ideia de cooptação.
O mercado não tem o controle da cultura
O mercado não apresenta o veganismo a ninguém. Ele nem poderia ressignificá-lo porque não tem esse poder. Ele não tem o controle da cultura e sim reage à cultura. E olhar mais para a cultura em vez do mercado é olhar exatamente para onde a disputa ocorre e onde os sentidos e suas mudanças se concentram.
Um erro também seria subestimar a capacidade do consumidor de fazer escolhas conscientes de acordo com seus interesses – acreditar que ele não tem capacidade própria de discernimento. O consumidor não é um receptáculo “a ser preenchido pelos interesses do mercado” – algo que aprendemos também com Michel de Certeau (com as artes do fazer). Podemos encontrar sólidas refutações para isso a partir não apenas dos estudos das mediações de Martín-Barbero como também dos estudos de consumo e cidadania de Canclini e dos estudos sobre cultura e habitus de Bordieu, além dos estudos culturais britânicos (Stuart Hall, David Morley, etc).
Mesmo o consumo de produtos de origem animal não surge com o mercado. Ele apenas explora o que já existe, ou seja, uma cultura de consumo que o precede. Em relação a produtos veganos, é a mesma coisa, embora em condições não hegemônicas. O mercado não disputa o sentido cultural, ele se vale do sentido cultural. O mercado não é um produtor primário de significado cultural e sim um extrator e reaproveitador.
A visão fatalista do consumidor passivo: ignorar a agência é um problema
Essa visão fatalista que atribui ao consumidor uma condição de passividade é extremamente problemática porque ignora sua capacidade de agência – como se ele fosse um “inapto”, alguém sem capacidades próprias. Contraditoriamente, isso reproduz um viés semelhante ao que encontramos até no colonialismo que tende a ser criticado também por veganos que defendem a interseccionalidade e que acreditam na cooptação do veganismo. Afinal, isso seria dizer que as “pessoas precisam ser salvas de seu próprio veganismo”.
E isso, reforço, não quer dizer que o mercado não possa ser problematizado, já que ao oferecer produtos, e se esses produtos favorecem uma ideia de que ser vegano é inacessível, então o mercado desempenha um papel na configuração da percepção sobre “o viver vegano”. Mas isso não surge como um plano, uma intencionalidade, mas como resultado de um grupo explorando uma demanda de consumo envolvendo um novo grupo de consumidores.
Outro ponto também que entra em conflito com a ideia de cooptação é que se as pessoas não consomem esses produtos em um volume que justifique sua oferta, o mercado apenas deixa de oferecê-los, como já houve com produtos veganos em que o retorno com essa oferta não justificou sua continuidade. Logo, se fosse uma questão de apropriação, o mercado operaria de outra forma – mas isso entraria em conflito com a lógica dominante: do lucro.
Se o veganismo passa a ser pensado de outra forma, não é porque isso ocorre simplesmente alheio aos veganos, mas porque os próprios veganos também estabelecem novas significações e negociam sentidos de acordo com o que acreditam ou defendem – até mesmo a partir de uma ideia de “popularização” do veganismo ou para caber em uma “lógica identitária” e que pode ter custos de longo prazo inconsiderados.
Se o veganismo é visto como uma postura ética radical, uma dieta da moda ou um estilo de vida, isso é resultado de disputas dentro e fora do movimento – incluindo também mídia, redes sociais, conversas cotidianas, educação, etc. São os veganos, junto com outros atores culturais, que definem e redefinem o que o veganismo significa. Quando isso chega ao mercado e acreditamos que a culpa é do mercado, em sua ação de cooptação, é difícil ignorar que a atenção está no lugar errado.
Os consumidores, como podemos reconhecer a partir da teoria das mediações, têm agência. Eles se apropriam dos produtos, os ressignificam e os utilizam de formas que escapam ao controle do produtor. Isso faz do mercado um campo de disputa e não um campo de dominantes e subalternos.
A percepção de um “mercado todo-poderoso” que coopta pode gerar um efeito duplamente paralisante – tanto na dimensão estratégica quanto na psicológica – para um movimento social, porque leva ao fatalismo justamente quando se busca o contrário. Os movimentos sociais mais bem-sucedidos do século XX e XXI não destruíram estruturas poderosas de frente; eles as tensionaram e as ressignificaram por dentro.
O poder gerativo está na cultura, não na economia: a hegemonia e a guerra de posição
Podemos usar a lógica gramsciana para compreender que o poder hegemônico não se mantém apenas pela força (dinheiro, Estado), mas também pelo consenso cultural. A disputa pela hegemonia é justamente a batalha para tornar suas ideias “senso comum”. O mercado, como reflexo do senso comum, só mudará quando o senso comum cultural mudar. Portanto, a batalha eficaz não é contra o mercado, mas pela cultura que o mercado espelha. Ingênuo também seria, com base nos outros artigos que publiquei na Vegazeta, ignorar que também não é a oferta de produtos veganos que mudará a realidade, mas as mudanças que a precedem no campo da cultura.
O especismo é um exemplo clássico de hegemonia. A exploração animal não se sustenta apenas pelo poder econômico de sua indústria. Ela se sustenta porque é invisível, normalizada e ainda considerada necessária pela cultura. Ainda há um “senso comum” de que animais são recursos, que alimentos de origem animal são essenciais, que representam o desejável, etc. A mudança, portanto, não vem de um ataque frontal ao aparato econômico (o “ataque de frente”, que seria tentar derrubar a indústria por pura força, uma missão impossível), mas de uma longa “guerra de posição” no terreno da cultura.
É uma batalha lenta, trincheira por trincheira, para desnaturalizar o especismo e tornar o antiespecismo parte do novo senso comum. Não há um cenário em que o veganismo possa crescer de forma realmente significativa que não envolva a disputa no campo da cultura. Isso não significa ignorar o mercado ou o Estado. Significa entendê-los como campos secundários de realização da hegemonia cultural conquistada.
Quando a cultura muda, o mercado corre atrás para vender o novo “normal” e o Estado é pressionado e legitimado a criar leis que reflitam os novos valores. A legislação se torna registro formal da mudança já ocorrida nos costumes. A disputa cultural é a fase de construção do poder. A atuação no mercado e no Estado é a fase de exercício e consolidação desse poder.
A crítica que, ao demonizar o mercado, entrega toda a agência a ele
Em última análise, a acusação de que o mercado “coopta” ou “esvazia” o veganismo parte de uma premissa equivocada: a de que o poder de definir significados reside primordialmente na esfera econômica. Este artigo argumenta o contrário. O poder gerativo está na cultura. O que o mercado faz é uma operação derivada e seletiva: ele se vale, para fins de lucro, dos significados que já encontraram alguma ressonância e visibilidade no campo cultural.
Portanto, quando a vinculação do veganismo a um “estilo de vida” superficial nos desagrada, o antagonismo direcionado ao mercado é um desvio. O questionamento deve recair sobre nós mesmos: que narrativas estamos priorizando em nossa comunicação? Que versão do veganismo estamos, coletivamente, tornando mais visível? O mercado não é o autor do enredo; é um espectador que convenientemente monta um palco para a cena que já estava sendo aplaudida. A responsabilidade pelo roteiro e por sua profundidade é, e sempre foi, nossa.
Ao atribuir ao mercado uma força que ele não tem, estamos quase dizendo que há uma força maior do que nós e sobre a qual não podemos prevalecer. Isso tira a mudança do campo do concreto ignorando que o mercado se vale do que já existe – de concepções pré-existentes. Ele não tem o poder de criar uma cultura de significação do zero. Isso transforma o mercado de um mecanismo social e econômico em um sujeito histórico metafísico. É uma visão quase teológica. Ao criar esse “deus mercado”, a crítica supostamente radical na verdade entrega toda a agência a ele.
Outro problema também está nos limites da crítica de cooptação porque geralmente elas são totalizantes a partir da especificidade. A crítica, por exemplo, que se concentra em um “hambúrguer plant-based” ou em outro produto vendido como “carne vegetal” por uma grande corporação, não apenas superestima o poder desse mercado como também superestima a importância material desses produtos no cotidiano vegano e não vegano.
É uma crítica que facilmente pode lutar contra um espantalho midiático, não contra a prática diária. Portanto, a ideia de que o mercado está “cooptando o veganismo” por meio de um produto que é marginal na dieta vegana típica é, no mínimo, desproporcional. É como dizer que a cultura italiana foi cooptada porque existe pizza congelada no supermercado.
Se olhamos para um produto e dizemos: “Olhem! O mercado está roubando/se apropriando do nosso significado!”, isso ignora que o sentido original não está na prateleira – está no campo cultural. O que está na prateleira é uma tradução reduzida e comercial de um desejo social que foi gerado pelo significado original.
As quatro mediações: do significado cultural à oferta material no mercado
Para compreender melhor isso, precisamos entender como ocorrem as mediações em relação com essa realidade. A primeira etapa, que podemos chamar de “Mediação 1”, envolve a geração de significados (campo cultural) – que diz respeito à criação e mais tarde a disputa do significado de “veganismo”. É um trabalho simbólico e discursivo.
A “Mediação 2”, surge em forma de internalização e demanda latente (campo social/individual). Os indivíduos influenciados pela “Mediação 1” internalizam o significado e mudam hábitos. Outros são tocados por aspectos periféricos (saúde, ambiente, etc). Surge uma demanda difusa por alternativas que se alinhem, total ou parcialmente, a esses novos significados/necessidades. Não é ainda uma “demanda de mercado” clara; é um desejo cultural se materializando.
A “Mediação 3” surge como sinalização e identificação de nicho (campo mercadológico). Nesse caso, os atores são empreendedores, analistas de mercado e também as grandes corporações. Eles identificam que a demanda difusa da “Mediação 2” atingiu um volume economicamente interessante. Eles não “veem veganos”; veem um padrão de comportamento e uma lacuna de oferta. Então traduzem o significado complexo em atributos de produto vendáveis: “plant-based“, “cruelty-free“, “100% vegetal”, “à base de plantas”, etc.
Já a “Mediação 4” é a oferta material (mercado). Os atores são a indústria e o varejo que desenvolvem e lançam os produtos que materializam os atributos identificados na “Mediação 3”. Assim, o produto chega à prateleira. Enfim, o mercado não “vê” o significado ético profundo – porque não é isso que é essencialmente relevante para ele. Ele “vê” o rastro comportamental que esse significado (entre outros) gerou na sociedade. E ele oferece uma solução material para esse comportamento.
A primazia do cultural sobre o econômico: a cultura dissolve falsas dicotomias
Se o mercado apenas se vale do que já existe, então o poder verdadeiro está no campo da produção cultural anterior ao mercado. Atribuir ao mercado uma agência mágica, como se as estratégias de marketing criassem do nada desejos e significados, é dar ao mercado um poder demiúrgico que ele não tem – e tanto a abordagem que demoniza o mercado quanto a que atribui uma fé cega nele cometem o mesmo erro.
É preciso insistir, com a tradição que vai de Gramsci a Martín-Barbero, na primazia do cultural sobre o estritamente econômico. A hegemonia e as mediações são conceitos justamente forjados para entender como os sentidos (como a ideia de “veganismo”) são gerados, negociados e transformados no espaço público antes e para além da relação estabelecida com o mercado.
A “cultura” não é apenas o campo da disputa, é o nível de análise que dissolve falsas dicotomias e permite uma inclusão radical. Quando elevamos a “cultura” ao terreno primário, todas as guerras internas do veganismo se revelam falsas escolhas. A cultura se conquista disputando-a, de forma inteligente e estratégica, dentro e fora do mercado, usando todas as mediações, com um projeto ético claro. O mercado é apenas uma das arenas, nem o vilão absoluto nem o salvador. Também faz parte da mudança usar as contradições do mercado, a agência dos consumidores, as brechas na cultura, para avançar um projeto ético de transformação profunda.
Ao dizer que o produto no mercado é “cooptação”, essa visão frequentemente despreza também a capacidade da pessoa comum de usar esse produto para seus próprios fins. Trata o consumidor como um receptáculo passivo a ser protegido das dinâmicas de mercado, em vez de um agente que pode se apropriar criticamente das ferramentas disponíveis. Essa postura parte de uma premissa compreensível, a rejeição a um sistema econômico exploratório, mas a transforma em um fetiche analítico.
O mercado deixa de ser um campo social complexo de trocas materiais e simbólicas (onde sentidos são disputados) para se tornar uma entidade monolítica e mal-intencionada. Reduz a rica disputa cultural pelo significado do veganismo a uma mera disputa contra “a mercantilização”, como se o sentido ético pudesse ser corrompido pelo simples contato com a troca monetária.
O equívoco do marxismo economicista e a raiz cultural do especismo
O problema envolvendo esse exemplo e outros, assim como toda a ideia de “cooptação”, é que ela ecoa o marxismo economicista ou reducionismo de classe – a visão que trata a economia como base determinante e a cultura, a política e as ideias como meros reflexos ou “epifenômenos”. Essa inversão lógica levou a grandes equívocos.
O principal, para nós, é este: ao focar no antagonismo ao mercado como se ele fosse o agente cooptador, ignora-se que, se o consenso cultural é baseado na hegemonia, a disputa verdadeira se dá no campo da cultura e não no boicote às suas mediações com o mercado. Um exemplo que percorre este artigo e expõe essa inversão com clareza é o consumo de animais: não foi a economia ou o mercado que o criou, mas a cultura. Essa cultura, ao se tornar hegemônica, possibilitou que o mercado o explorasse em escala industrial.
Apontar essa falha, no entanto, não significa acreditar que a oferta de produtos mudará a cultura por si só, como já argumentei em outros textos ao criticar a visão ingênua de que a grande transformação virá do mercado. O que ambas as abordagens – a dogmática e a pragmática – cometem é o mesmo equívoco de fundo: superestimar o poder causal da economia e subestimar o poder autônomo e prévio da cultura.
A ironia reveladora é que o especismo não é um sistema econômico. É um sistema de crenças, valores e hábitos culturais profundamente arraigados. A economia, no caso, a indústria animal, é a consequência material e exploradora desse sistema. Ela só se torna possível e lucrativa quando a cultura já concedeu a hegemonia à ideia de que animais são recursos, ao hábito milenar de consumi-los, ao valor social da carne, à estética culinária que os envolve e à linguagem que os reduz a meros “cortes” e “produções”. Por isso, a luta decisiva não é contra um sintoma econômico, mas pela raiz cultural. Como nos lembra Gramsci, é uma “guerra de posição” – longa, paciente e travada nas trincheiras da cultura. É ali, no campo dos significados e do senso comum, que se ganha ou se perde o direito de redesenhar o mundo.
Há, portanto, uma ironia profunda na postura que demoniza o mercado: um discurso que se pretende radical e anticapitalista acaba, por sua generalização fetichizada, subestimando radicalmente o poder da cultura e superestimando o poder do capital. Ele concede ao mercado uma agência quase mágica de corrupção de sentidos, enquanto exime o movimento da difícil tarefa de construir uma contra-hegemonia cultural robusta. Em última instância, a demonização do mercado pode ser a forma mais sofisticada de capitulação cultural, pois troca a luta concreta pelo significado – suja, complexa, cheia de mediações – pela pureza reconfortante da recusa total.
Se a batalha decisiva é, como argumentado, pela hegemonia cultural, ou seja, pela construção de um novo senso comum, qual é, então, o seu campo concreto?
Não é a prateleira do supermercado, mas as trincheiras diversificadas da sociedade civil onde o senso comum é forjado de maneira multifacetada. Isso exige uma guerra de posição plural e não purista, que reconheça uma verdade estratégica fundamental: nenhuma voz, por mais legítima que seja, ressoa com todo mundo.
A conquista da hegemonia cultural demanda, portanto, uma ecologia de discursos e abordagens, em que diferentes sujeitos falem com diferentes públicos – cada um utilizando os argumentos, códigos e estéticas que fazem sentido em seu contexto específico. Afinal, uma pessoa capaz de dialogar e gerar impacto em um contexto pode não ressoar em outro, justamente por diferenças socioculturais. O campo concreto é, então, todos os campos ao mesmo tempo.
Isso exige coalizões de vozes, não uma voz única: produção de contra-narrativas a partir de todos os meios e para todos os públicos; ocupação estratégica de espaços físicos e digitais; infiltração e pressão dentro de instituições (educação, mídia, associações) por múltiplos canais; trabalho de base comunitário que torne o veganismo uma solução material palpável – seja numa periferia urbana, num bairro de classe média ou numa zona rural; e crítica cultural constante que desmonte o especismo onde ele aparecer. A força virá da soma das perspectivas, não da supressão das diferenças.
Enfim, como mediadores socioculturais, para emprestar um termo de Martín-Barbero, nosso papel é fomentar uma ecologia de comunicação vegana rica e diversa, em que cada voz encontre seu público e, juntas, todas construam o consenso cultural necessário para que o especismo seja superado. Logo abaixo, trago também alguns artigos complementares para refletirmos sobre questões em relação com o que foi abordado antes, inclusive explorando especificidades:
O “colonialismo metropolitano” no veganismo
Quando veganos de grandes centros urbanos, que têm acesso a uma maior variedade de produtos, julgam veganos que consomem produtos de grandes corporações, eles ignoram que aqueles produtos podem ser os únicos aos quais consumidores de cidades do interior do Brasil têm acesso (incluindo itens não alimentícios) e que também são os mais compatíveis com o orçamento deles quando querem consumir “algo diferente”.
Claro que alguém pode dizer que a pessoa está consumindo algo que “não é necessário”. Mas desde quando temos o direito de determinar o que é necessário ou não e desejável ou não para alguém que já não consome nada de origem animal? Difícil não ver nisso uma forma irrefletida de “colonialismo metropolitano” que ignora especificidades.
Podemos pensar em apresentar opções com base nas necessidades, interesses e gostos de alguém, e se a pessoa gostar, tudo bem, mas se não gostar, tudo bem também. Esse caso exemplifica como a alteridade é ofuscada pelo “imperativo do eu político”.
Também podemos sugerir que as pessoas aprendam a cozinhar, que façam hortas, que desenvolvam uma nova relação com a comida, mas não podemos exigir isso delas. Exigir é operar uma arbitrariedade que desconsidera também a economia de atenção baseada na disponibilidade de tempo.
É também ignorar que dentro das especificidades humanas individuais não há nada de errado em não querer cozinhar ou desenvolver uma horta. Fazer o contrário é interferir na agência e autonomia humana do fazer. Um movimento que interfere nisso, impondo um modo de vida mais homogêneo, trai seu próprio potencial libertador.
Até mesmo a lógica de consumir orgânicos pode soar como elitista quando ignora a realidade material da maioria dos consumidores. A discussão, então, deve ser sobre políticas públicas transformadoras, e não sobre a demonização de hábitos individuais de consumo e a tentativa de tirar o sentido ético-político deles, quando existe.
A narrativa romântica da “pequena empresa”
A ficção do pequeno produtor puro e a falha de análise material
Isso também coincide com a romantização da “pequena empresa vegana” ou do “pequeno produtor vegano”. Ninguém nesse meio está livre da lógica capitalista e um pequeno empreendedor vegano também pode ter como maior prioridade o lucro. Também pode nutrir uma visão de mundo tão capitalista quanto a de uma grande corporação e pode até desejar se tornar tão grande quanto ela.
A romantização da “pequena empresa” também cria uma ilusão de que uma pequena empresa é sempre “mais ética”, que nunca pratica preços abusivos, que nunca oferece produtos de qualidade questionável – ainda que tudo isso possa ser uma legitimação por “ficção”, para emprestar um termo usado pelo historiador Yuval Harari em referência ao que validamos como crença e não como algo concreto a partir de um senso coletivo. A consideração acrítica de se consumir produtos de pequenas empresas pode-se mostrar extremamente equivocada quando não é baseada em uma análise material das cadeias produtivas, mas em um sentimento (nostalgia, desconfiança do grande) que é validado pelo grupo.
Portanto, a romantização da “pequena empresa vegana” é mais do que um erro tático; é uma falha de análise material. Ela troca o combate à lógica sistêmica do capital (o que exigiria uma estratégia cultural e política de larga escala) por uma busca consumista por santuários simbólicos dentro desse mesmo sistema. Enquanto o movimento gastar energia procurando o “produtor puro” (uma ficção que ignora que até o mais bem-intencionado dos empreendedores opera sob a tirania do lucro, do mercado e do crescimento) estará renunciando à sua única tarefa verdadeiramente transformadora: a de mudar a cultura que normaliza o uso de animais. A disputa não é entre a marca A ou B, mas pelo fim da condição do animal como fim no ser humano. E isso não se resolve no balcão de uma pequena loja; resolve-se no campo do senso comum.
Mais do que isso, essa análise material revela uma dependência inescapável: a “pequena empresa vegana” raramente é uma ilha autossuficiente. Para produzir, ela pode depender de insumos e ingredientes fornecidos pelas grandes corporações da indústria de alimentos, e porque também pode sequer encontrá-los em pequenos produtores (ou pelo menos não a partir de preços que possa pagar). E para distribuir e alcançar consumidores, ou mais consumidores, precisa negociar com as redes de supermercado e plataformas de varejo que formam a espinha dorsal do capitalismo contemporâneo. Seu suposto “fora” do sistema é, na verdade, uma posição profundamente dentro da mesma teia de produção, logística e financiamento que sustenta a exploração em larga escala. Sua existência não refuta o sistema, ela o confirma.
Outro ponto é que a romantização da pequena empresa comumente opera a “tirania sobre a pequena empresa”, em que se estabelece isso como fim – como se pequenas empresas existissem sempre para não crescer, que sua agência somos nós que determinamos e que elas só devem ser apoiadas enquanto aceitam sua “pequenez” e não busquem mais do que isso. Isso cria a ilusão de que a “pequena empresa” não opera dentro do capitalismo, e que a apoiamos porque ela “precisa da nossa ajuda”. Como se comprar dela fosse até mesmo uma sinalização de virtude nossa e um ato de “caridade política”. Isso cria uma figura idealizada que deve permanecer, no nosso ideário, “eternamente pequena, pura e dependente”. Essa “tirania” só é possível porque parte de um lugar de privilégio: o de quem pode se dar ao luxo de escolher não apenas o produto, mas a narrativa que o acompanha.
A tirania da pequenez: privilégio, exclusão e o nicho tolerado
Ademais, comprar do pequeno é uma escolha e nem todo mundo tem esse tipo de escolha, quando o preço é o que determina o que será consumido e não a empresa que a vende. A “tirania” é sustentada pela mesma ficção de que o pequeno é intrinsecamente ético. Ela é um sintoma da incompreensão da hegemonia capitalista. A pessoa acredita que, ao apoiar o pequeno, está “fora” ou “contra” o sistema, quando na realidade está apenas consumindo uma mercadoria que carrega uma narrativa de resistência – uma das mercadorias mais lucrativas no capitalismo tardio.
O “produtor local de queijo vegano” pode usar amido modificado da ADM, lecitina de soja da Cargill e embalar seu produto em plástico da Braskem. A “pequena empresa” não é um refúgio fora do sistema, mas um nó periférico dentro da mesma rede capitalista global. Mesmo o “contra-mercado” hoje – na forma de produtores locais, feiras e cooperativas – é estruturalmente dependente e subordinado ao grande mercado capitalista (insumos, logística, financiamento). Ele não substitui o sistema; é um nicho por ele tolerado.
Também é crucial reconhecer que a própria opção de “comprar do pequeno” é, em si, um privilégio econômico. Para a grande maioria das pessoas, inclusive para muitos veganos, a decisão no supermercado é uma equação de necessidade, onde o fator determinante é o custo. Romantizar o consumo da pequena empresa como a via “verdadeiramente ética” é, portanto, não apenas uma análise econômica ingênua (que pode refletir também a mera “sinalização de virtude”), mas um ato de exclusão de classe baseado em um recorte político que se apresenta como inclusivo.
Ele invisibiliza o vegano que sobrevive com alimentos e outros produtos básicos e acessíveis e transforma o ativismo em um clube para quem pode pagar pela pureza simbólica. Essa postura desvia o movimento de seu objetivo estratégico mais importante: não é fazer com que alguns possam comprar o produto “certo”, mas transformar a cultura de tal forma que o produto ético seja o padrão acessível a todos.
Como o foco no mercado direciona atenção para o superficial
Outro erro baseado na crença dos superpoderes do mercado é se focar em produtos que as pessoas não consomem no cotidiano, mas somente casualmente ou no final de semana. Isso torna a crítica mais distante da realidade material do consumo diário. Se damos mais atenção aos produtos que não estão presentes no cotidiano, há um direcionamento de atenção para um espantalho.
A pergunta deveria pelo menos ser: “Quais produtos de origem vegetal são mais consumidos por quem não consome produtos de origem animal?” Dessa forma, centramos esse ponto no campo da equivalência. Isso mostraria que o consumo não está concentrado nos produtos ultraprocessados das transnacionais.
Logo, demonizar produtos de grandes empresas, mas que não estão inseridos no consumo diário dos consumidores que não consomem o que é de origem animal, e que muitos nem sequer têm intenção de incorporar ao consumo diário, mas somente ocasional, é um erro duplo de atenção; até porque, não reconhecer a disputa no campo da cultura e concentrá-lo no mercado, é cometer o mesmo erro do marxismo economicista no passado.
O desvio de atenção: atacar um mercado incipiente em vez da cultura hegemônica
Agir dessa forma é acreditar que a disputa pelas condições materiais de produção/consumo (o mercado) é primária, e a cultura/superestrutura é mero reflexo. Isso é inverter o que realmente importa – a cultura como campo gerativo primário. Usemos uma simples lógica: a indústria de produtos de origem animal jamais seria bem-sucedida se a cultura não tivesse legitimado o que é de origem animal como desejável ou normal.
É preciso olhar para o que as pessoas realmente comem e constroem sua vida em torno (a base material da cultura vegana). A implicação é clara: se um movimento gasta 90% de sua energia crítica com os 10% de uma alimentação vegana que é proveniente de produtos ultraprocessados de origem vegetal, sua atenção está no lugar errado.
Esse desvio de atenção se torna ainda mais grave quando consideramos a desproporção de forças: atacar um mercado ainda incipiente como o de produtos veganos, que tem pouco impacto em comparação à indústria de produtos de origem animal, reforça o quanto essa tática é equivocada. Dados de mercado consistentemente mostram que o mercado global de carne é medido em trilhões de dólares, enquanto o de “novas proteínas vegetais” atinge dezenas de bilhões – sendo apenas uma parte disso os produtos de origem vegetal de grandes corporações que são alvo de críticas.
Atacar, por exemplo, um sintoma marginal (o produto vegetal da JBS) com a mesma ou maior intensidade com que se ataca o problema principal (o core business de abate da JBS) é uma inversão de prioridades suicida. É focar no vazamento de uma torneira enquanto a represa inteira está transbordando. Enquanto essa inversão persistir, o movimento continuará disputando o significado de gotas, ignorando que a verdadeira batalha é drenar o oceano cultural que abastece toda a represa.
Grandes corporações estão investindo em produtos animais com dinheiro de “carnes vegetais”?
Quando veganos afirmam que grandes corporações estão investindo em produtos animais com o lucro obtido a partir de suas “carnes vegetais”, esse é um pensamento incoerente. É mais lógico que uma empresa esteja fazendo exatamente o oposto, já que esse mercado é marginal em relação ao mercado de produtos de origem animal. Não faz sentido direcionar o retorno ínfimo com proteínas vegetais para a indústria de proteína animal – já que a primeira aposta ainda opera como nicho porque não tem lastro cultural comum. E sequer sabemos se um dia conseguirá disputar de igual para igual com a oferta de produtos de origem animal, considerando que essa hoje representa globalmente trilhões de dólares – e exatamente porque tem a seu lado a hegemonia cultural.
Esse é outro ponto em que em vez do foco na cultura e na disputa pela hegemonia cultural, se concentra mais uma vez atenção no mercado – e um mercado, pelos motivos apresentados antes, em desenvolvimento, mas ainda incipiente. Outro ponto problemático é a associação entre o produto de origem vegetal de uma grande corporação e o desmatamento. Se o produto dessa empresa não está envolvido diretamente no desmatamento, e sim o produto de origem animal que ela oferece, não existe uma relação entre o primeiro produto e o desflorestamento, considerando até que esse produto demanda pequenas áreas de produção. Parece ilógico também defender que é melhor que uma empresa não invista em produtos que gere menos impacto para os animais e para o meio ambiente porque hoje seu carro-chefe são os produtos de origem animal. Ademais, podemos retomar o mesmo ponto colocado antes – a excessiva atenção no que menos importa em termos de mudança cultural.
A incoerência do foco e a crítica seletiva
Essa excessiva atenção também tende a ignorar grandes empresas e que são vistas como “veganas” ou que oferecem “produtos exclusivamente veganos ou plant-based” e que nunca deixam também de orbitar sob a lógica capitalista. Elas podem, e há aquelas que fazem isso, reduzir a qualidade dos ingredientes para aumentar a margem de lucro, e oferecendo até menos proteínas do que grandes corporações demonizadas. Seus fundadores e sócios também podem eventualmente vender essas empresas quando parecer mais vantajoso investir em outro segmento. Podem até usar soja transgênica enquanto há grandes corporações que podem preferir não usá-la em uma linha de produtos exclusivamente vegetais e talvez até por considerar o que é importante para consumidores desses produtos – algo que também não ocorre sem mediação. Por exemplo, consumidores criam uma demanda por produtos sem transgênicos (por valores éticos, de saúde, ambientais). A empresa identifica essa demanda como “atributo vendável” e um diferencial de mercado. Logo, temos dois processos de mediação: o primeiro a partir da cultura (consumidores) e o segundo a partir do mercado (reação).
Outro ponto a ser considerado é que uma grande corporação pode oferecer o preço mais acessível para o consumidor enquanto a outra empresa pode cobrar um preço considerado abusivo com base nos ingredientes utilizados. Além disso, pode até selecionar ingredientes inferiores com menos proteínas por porção para ter uma margem de lucro maior – mas provavelmente não receberá a mesma crítica se isso fosse feito por uma transnacional. Portanto, a hipocrisia atinge seu ápice quando percebemos que o purismo dogmático, em sua cruzada contra o “grande capital”, acaba por forjar e sustentar um novo tipo de mercado capitalista ainda mais insidioso: aquele que vende não apenas um produto, mas a ilusão de uma consciência tranquila e uma identidade superior.
Enquanto direciona seu ódio seletivo para corporações com portfólio misto, ele concede um salvo-conduto ético a empresas que, sob o manto do “exclusivamente vegetal”, não deixam de operar com a lógica implacável de lucro – e podem não ver problema em fazer isso às custas da qualidade nutricional, do preço justo e da transparência. Essa postura, longe de ser revolucionária, é profundamente reacionária: ela substitui a análise material concreta por tribalismo, a estratégia de transformação cultural por um consumo identitário de guerrilha, e a luta pela hegemonia por uma retirada para guetos de pureza. No fim, o dogmático não está sabotando o capitalismo; está apenas escolhendo quais capitalistas merecem lucrar com sua ingenuidade ou conveniência.
Ademais, boicotar as grandes corporações não faz com que deixem de existir. E mesmo que haja um impacto, elas apenas transferem atenção e investimento para outro segmento ou, pior, para o segmento mais prejudicial aos animais. Nesse caso, veganos operariam contra os próprios animais. E ignorar isso é ignorar a disputa pela hegemonia cultural. Ao equiparar “engajamento com o mercado” à “capitulação”, essa visão inviabiliza a priori qualquer estratégia de massificação que passe pelas vias de acesso e distribuição dominantes na sociedade atual. Constrói, assim, uma barricada moral que isola o movimento da maioria da população, para quem o mercado é o espaço concreto de obtenção de comida e outros produtos.
O erro estratégico do boicote: da barricada moral às externalidades positivas
Portanto, essa excessiva atenção ao mercado incipiente e essas acusações economicamente frágeis representam mais que um erro tático. São a materialização do desvio estratégico que este artigo denuncia: a renúncia à difícil guerra de posição cultural, em troca da cômoda, porém inócua, guerra simbólica contra marcas e balanços patrimoniais. Enquanto o movimento disputar a contabilidade das corporações, estará concedendo de bandeja a vitória no único campo que importa: o da hegemonia cultural que torna a exploração animal um negócio lucrativo.
Quem defende o boicote absoluto a produtos veganos de grandes corporações por acreditar que isso “fortalece o inimigo” está, portanto, cometendo um erro tático duplo: primeiro, ignora que está boicotando justamente a parte da empresa que menos a interessa financeiramente. Ao rejeitar a força que, no mundo real atual, tem maior capacidade de massificar e baratear produtos, o purismo pode estar, na prática, confiando o futuro apenas a pequenas empresas que têm muito mais chance de falir antes de realmente colaborar com qualquer impacto sistêmico.
Isso ignora também o que é chamado, na economia, de externalidades positivas de rede e redução de custos de transação. Esse é um ponto fundamental que mostra como a entrada das grandes corporações, mesmo com motivações cínicas, pode criar um ecossistema mais favorável para todo o setor plant-based, incluindo as menores empresas de produtos veganos.
O paradoxo é que, ao buscar seu nicho de lucro, a corporação gera um efeito colateral estrutural: quando passa a comprar toneladas de proteína de ervilha, grão-de-bico ou soja texturizada para seus produtos, ela massifica a demanda por esses insumos. Isso incentiva fornecedores a investirem em produção, escala e logística, o que baixa o custo unitário e aumenta a qualidade dessas matérias-primas para o mercado como um todo. A empresa de produtos exclusivamente veganos que chega depois encontra, portanto, um fornecedor estabelecido, com preços mais competitivos e entrega confiável – uma infraestrutura que ela, sozinha, jamais teria condições de estruturar.
Portanto, a visão que vê a entrada da corporação apenas como uma “mancha” ou “corrupção” de um espaço puro é míope. Ela ignora as externalidades positivas. A corporação, em busca do seu nicho de lucro, abre espaços que podem ser ocupados pelas pequenas empresas, favorecendo um ecossistema que garante mais segurança e menos riscos envolvendo desde uso de insumos e ingredientes até tecnologia e disponibilidade de produtos. Logo, seria equivocado ignorar esse espaço como um campo de batalha que não pode ser pensado com um viés maniqueísta. Negligenciar a importância da ocupação de espaços no mercado é também desistir de disputar o campo da hegemonia cultural.
A interpretação final, o peso que cada atributo terá, a conexão que o consumidor fará entre um produto e seus valores mais profundos, é um processo que ocorre dentro do consumidor, mediado pela cultura que ele absorveu. O mercado é, portanto, um facilitador de encontros entre produtos e significados pré-existentes. Não é um produtor de significados.
Dessa forma, concluímos que a abordagem demonizante e totalizante do mercado pode ser tão contraprodutiva quanto a abordagem que tem uma fé cega na mudança a partir dele ou que acredita que motivações frágeis não levam a resultados frágeis. A cada ano há mais animais sendo explorados e mortos, não menos. Logo, nenhuma abordagem ou vertente vegana está transformando estruturalmente a realidade. Ignorar que não haverá grande transformação sem passar pela compreensão da disputa no campo da cultura e, portanto, sem travar a longa guerra de posição pela hegemonia cultural, é manter o movimento à margem. É persistir, mesmo que sem reconhecer, em uma esfera de irrealização.
O veganismo e a armadilha do marxismo vulgar: por que atacamos a proteína errada
Em uma série de artigos, critiquei os desvios estratégicos do movimento vegano – da “cultura de bolha” à guerra contra produtos. Este texto vai à raiz do problema: mostra como a importação acrítica de um marxismo economicista vulgar direciona a luta para o alvo errado, fazendo o movimento gastar sua energia contra sintomas no mercado enquanto o poder real do especismo permanece intocado.
O desvio estratégico – atacar corporações com linhas plant-based até com mais vigor do que o complexo de poder da agropecuária – não é um acidente ou uma mera escolha tática equivocada. Ele é sintomático de um erro teórico mais profundo que o movimento importa de certas vertentes da esquerda: a adesão a um marxismo economicista e vulgar. Essa visão, que já foi criticada e superada por correntes centrais do próprio pensamento marxista ao longo do século XX, reduz a análise social a um esquematismo mecânico.
Pensadores como Antonio Gramsci (com seu conceito de hegemonia cultural), György Lukács (com sua teoria da reificação) e Louis Althusser (com sua crítica ao determinismo econômico), entre outros, desenvolveram ferramentas teóricas justamente para superar essa simplificação. Portanto, ao apontar esse erro, a crítica sequer se coloca fora do marxismo, mas recupera suas tradições mais sofisticadas e dialéticas, que compreendem a cultura e a política como instâncias decisivas, e não meros reflexos passivos da economia.
Essa visão reducionista entende o poder quase exclusivamente pela lente da propriedade dos meios de produção e da luta de classes econômica. No veganismo, essa lógica se traduz de forma automática e acrítica: se o inimigo é o capitalismo, então o inimigo concreto são as grandes corporações capitalistas. A consequência é uma caça a um símbolo (a marca, o produto na prateleira) que seja legível dentro dessa lógica maniqueísta.
Essa lógica, porém, é cega a uma distinção estratégica fundamental. Enquanto grandes corporações com linhas plant-based operam sob uma lógica de mercado adaptativa (já que são, em essência, organismos agnósticos que podem ser influenciados e até instrumentalizados favoravelmente aos interesses do veganismo quando uma nova cultura de consumo se torna economicamente viável), o poder do agronegócio e da Bancada Ruralista é de outra natureza. Para eles, a defesa da exploração animal não é uma mera opção de negócio e sim um pilar de identidade, poder político e autoimagem nacional. Eles não negociam interesses; defendem trincheiras existenciais. Ignorar essa diferença e tratar os dois como o mesmo “inimigo capitalista” é o atestado de falência da análise marxista vulgar.
O que essa visão ignora, e aqui reside seu fracasso estratégico, é a teoria da hegemonia cultural. O poder da Bancada Ruralista e do agronegócio especista não deriva apenas de seu capital econômico, mas de um consenso cultural profundamente arraigado que naturaliza a exploração animal como destino, progresso e necessidade nacional. Esse consenso é o que legitima seu poder político, concede-lhe subsídios e blindagem midiática. Ao priorizar um ataque simbólico a corporações (que são, em última análise, reatores oportunistas a mudanças culturais prévias), o movimento guiado por esse marxismo vulgar abandona o terreno decisivo da batalha: a disputa pela hegemonia cultural. Gasta-se energia em uma guerra civil contra sintomas no mercado, enquanto o núcleo do poder político e cultural que sustenta o sistema especista permanece intocado e sem uma oposição organizada e clara.
Assim como a Escola de Frankfurt teve a maturidade intelectual de superar o determinismo pessimista de sua primeira geração – que via o público/consumidores como mero receptáculo passivo da “indústria cultural“– e desenvolver teorias mais complexas sobre as mediações culturais, que reconhecem a capacidade ativa do consumidor de negociar significados, o movimento vegano precisa fazer um movimento análogo: superar sua visão maniqueísta que trata toda relação com o mercado como “cooptação” ou traição. Caso contrário, corre o risco de perpetuar uma caricatura de pensamento crítico que outras áreas já abandonaram em nome de análises mais realistas e eficazes.
Essa contradição prática expõe como a crítica dogmática, longe de ser uma postura anticapitalista consequente, é uma captura pelo próprio fetichismo da mercadoria que diz combater. Ela não avalia os objetos pelo seu potencial de mediação na guerra cultural; isto é, por sua capacidade de inserir novos hábitos e significados no cotidiano das pessoas, mas por seu valor simbólico como marcador de identidade tribal.
Um exemplo cristalino dessa lógica paradoxal: um ativista que utiliza um iPhone (epicentro do capitalismo de consumo de luxo e de uma cadeia com impactos socioambientais brutais), tem infinitamente menos capacidade de aproximar materialmente outra pessoa de um iPhone do que de uma proteína vegetal acessível de uma rede ou de uma transnacional. No entanto, sua energia crítica se concentra em demonizar o segundo enquanto normaliza o primeiro.
Esse contraste não serve para eleger a hipotética proteína vegetal como “solução”, mas para escancarar a completa desconexão entre o rigor moral performado e a análise material concreta. A seletividade não segue uma lógica de redução de danos ou de eficácia estratégica; segue a lógica da sinalização de virtude identitária. É a materialização do fetichismo que a crítica diz combater: a mercadoria (o iPhone) é absolvida por sua conveniência e status, enquanto outra mercadoria (o produto vegetal) é demonizado por seu valor simbólico como “traição” dentro da tribo. Essa inconsistência gritante é o sintoma perfeito de um pensamento que, ao se fechar em dogmas, perde a capacidade de avaliar o mundo real e, portanto, de transformá-lo.
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