O peixe não se reconhece como um fim no ser humano

Uma reflexão a partir do livro “Os Anos”, de Annie Ernaux

O peixe não se reconhece como um fim no ser humano

Os sobressaltos de um peixe e a semente do nojo

No livro “Os Anos”, Annie Ernaux narra que testemunhou um peixe se debater na grama durante longos minutos antes de morrer com sobressaltos. O peixe havia sido pescado pelo namorado, com quem logo terminaria. À noite, o testemunho resultou em uma experiência de nojo no ato compartilhado de comer o animal.

Essa passagem, ainda que breve, nos permite pensar no que são minutos de sobressaltos para um peixe que não viverá – sua luta, sua tentativa de escapar do sofrimento. Não podemos saber como o tempo transcorre para o peixe, mas inegável é reconhecer que a experiência para o peixe opera de forma extremamente antagônica à motivação humana de capturá-lo para comê-lo.

 Antagonismo: o peixe como fim em si mesmo vs. recurso humano

O peixe concentra toda sua energia em se libertar de uma situação em que escapar é uma impossibilidade. Ele não pode fazer prevalecer sua vontade; depende da perspectiva humana em relação ao seu próprio interesse para que não seja intencionalmente prejudicado.

A comum indiferença em relação ao animal que se debate por longos minutos, e que evoca uma realidade ordinária, reflete que o humano e o peixe ocupam o mesmo espaço, mas ainda assim o humano rejeita o que é ser peixe para o peixe – sustentando-o somente na lógica do peixe como um fim humano.

Mas o que representa o ato de se debater senão uma rejeição a tudo que é determinado sobre ele como expressão comum de uma arbitrária vontade humana? Ele se debater por minutos é tratado apenas como algo que faz parte de um processo natural – a sua captura. Muitas vezes, sequer há um olhar para o peixe que se debate, porque o “não olhar” também é trivializado.

O ato subversivo de sustentar o olhar: a “infração” de Annie

Annie Ernaux que narra essa interação também referenciando a si mesma como “ela”, e assim estabelecendo um distanciamento, olha para o peixe – um olhar que é como se fosse “de fora”, diferenciado, que poderia ser também de outra pessoa. Ao olhar, ela comete uma “infração” contra a ordem especista estabelecida. Ela foca no que deveria ser ignorado e concede ao peixe o status de sujeito de sua própria tragédia.

A dissonância do nojo: o preço emocional de ver

O nojo admitido pela protagonista na passagem não existe em desconexão à experiência do peixe. O nojo vem do conflito, de que o ato de comê-lo não existe sem oposição ao interesse do peixe. O nojo conecta-se à agonia, ao sobressalto, aos minutos como tortuosos – ao deslocamento da protagonista em direção ao peixe, seu interesse, sua miséria.

O nojo que ela sente é a consequência direta de ter sustentado o olhar. É o preço emocional de se recusar a participar da trivialização. O namorado, ao não olhar (ou ao olhar sem ver), permanece confortavelmente dentro da lógica dominante. Annie, ao ver, se exila dessa lógica – mesmo que de forma tão específica e pontual.

Seu nojo seria uma ausência somente se ela fosse capaz de apagar o peixe como fez seu namorado, que não compartilha da mesma conclusão. Isso assume também uma outra forma e simbólica de desconexão entre eles.

A alteridade como ponte empática: da desconexão amorosa à conexão com o peixe

Assim, a desconexão dele com o peixe surge como novo ponto de desconexão de Annie com o então namorado, considerando também desconexões pré-existentes em relação a outras questões. Logo, essa experiência é um elemento final para a ruptura do relacionamento.

Podemos supor até que algumas indisposições dela em relação ao namorado a aproximaram de um olhar empático para o peixe – porque, quando nos situamos menos de um lado, temos uma maior disposição a olhar para o outro lado.

Ao se sentir deslocada na relação, desconectada do namorado, Annie já ocupa um lugar de “alteridade” dentro daquele microcosmo de duas pessoas. O que Ernaux nos mostra, então, é que a capacidade de se compadecer do “outro” radical (o animal não humano) muitas vezes é aguçada pela nossa própria experiência de sermos, de alguma forma, um “outro” em nosso próprio meio.

Os limites da empatia: entre o testemunho e o hábito

Também podemos explorar uma outra camada de complexidade ao problematizar a dimensão de incômodo da protagonista. Afinal, sua reação surge dentro de uma experiência específica, mas não transforma completamente suas relações de consumo – se acaba sendo mais sobre o que se testemunha, porém não sobre o consumo baseado no que não se testemunha.

Essa contradição externa a fortaleza da dissonância cognitiva e como ela opera uma contraditória seletividade, mesmo entre pessoas que podem ser empáticas ao testemunho do sofrimento animal, já que essa consideração é localizada e circunscrita – não se transformando em uma revisão que leve a uma mudança geral de hábitos. E isso, claro, reflete uma realidade muito comum. Ainda assim, é algo que não perde potência analítica pelas associações e considerações que podemos fazer.

A potência analítica do ordinário

Podemos perceber como a experiência do peixe, que é uma reação de luta pela vida, de um fim em si mesmo, sempre opera contra a projeção do humano – a realização de um desejo, o peixe como um meio. E isso, claro, embora existam diferenças, ocorre com todos os animais submetidos aos interesses humanos em detrimento dos seus.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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