
Há algum tempo, li uma defesa de que o veganismo deve aceitar a “imperfeição”. Por exemplo, que pessoas que comam algo de origem animal de vez em quando não deixem de ser chamadas de veganas. Nisso há uma equivocada tentativa de ressignificação do veganismo.
Essa defesa se sustenta na ideia de uma “unidade” do veganismo como crescente, em que mesmo pessoas que não deixam de se alimentar de animais “ocasionalmente” não sejam “excluídas do veganismo”– criando uma ideia de um “maior veganismo” que “chega a mais pessoas”. O problema é que isso parte de uma premissa errada.
Se o objetivo é envolver também pessoas não veganas, que geralmente não comem nada de origem animal, mas comem “de vez em quando”, e reconheço que isso também pode ajudar a reduzir a exploração animal, nem por isso devemos relativizar o sentido do veganismo.
Além disso, não podemos ignorar que o veganismo não é somente sobre o que comemos, mas tudo que fazemos que pode ser evitado e que impacta na vida dos animais. Portanto, se o que importa é o impacto real que isso tem para os animais, como reduzir consumo, exploração e outros impactos, não precisamos negar que devemos contar também com não veganos.
Porém seria desonesto alterar o sentido do veganismo para criar uma ideia artificial de maior crescimento do veganismo. Outras pessoas podem e devem ser envolvidas nas mudanças relevantes ao veganismo – mas nem por isso o sentido do veganismo deve ser banalizado. Veganismo é o que é e não deve ser pensado para caber em uma estratégia que entre em conflito com o seu sentido.
Não nego que milhões de pessoas reduzindo de forma substancial o consumo de carne e de outros produtos de origem animal podem ter um impacto maior na pecuária do que milhares de pessoas que não consomem nada de origem animal. É exatamente por isso que não podemos contar hoje só com veganos. Por outro lado, isso não é motivo para descaracterizar o veganismo nem para deixar de lutar para que mais pessoas se tornem veganas.
O veganismo não pode ser superficializado. Isso não é sobre “purismo”, é sobre o compromisso ético que reflete a definição do veganismo. A ideia de criar um mundo vegano com a participação de não veganos é necessária. Mas, nem por isso, devemos alterar o sentido do veganismo. Não precisamos fazer parecer que não veganos são veganos.
Além disso, ao defender o veganismo como realmente é, no seu sentido completo de justificação ética, transmitimos mais seriedade e honestidade em relação ao que fazemos. Sei que quem faz esse tipo de sugestão, que visa uma “ressignificação”, geralmente tem uma ideia que pode ser argumentada como “um tipo de inclusão”.
Por outro lado, não reconhecer um não vegano como vegano não é exclusão – porque não é sobre negar contribuição se há mudanças que, somadas com tantos outros, podem ser favoráveis aos animais, e sim defender que o movimento vegano nunca pode deixar de ser honesto em relação ao sentido do veganismo. Podemos reconhecer contribuições, quando há, mas sem a necessidade de empurrá-las como sendo “veganas”.
Observações
Problema da banalização: Se passarmos a chamar de “vegano” quem consome produtos animais esporadicamente, diluímos o sentido original e abrimos espaço para justificativas como “flexitarianismo ético”, que pode perpetuar a normalização do uso animal.
Diluição da crítica estrutural: O veganismo questiona a normalização do uso animal. Se aceitamos consumo ocasional como “vegano”, enfraquecemos essa crítica.
Falsa impressão de progresso: Um “veganismo” ampliado artificialmente (incluindo não veganos) pode mascarar a falta de avanço real na mudança de hábitos.
Podemos valorizar a redução como um passo em direção ao veganismo, sem rotulá-la como veganismo.
Podemos incentivar transições sem falsos rótulos: “Você está no caminho, e o veganismo é o objetivo ético final”.
Veganismo: Dentro desse movimento, mantém-se o núcleo ético intransigente: quem não participa da exploração animal e do especismo em nenhuma circunstância evitável.
Observação final
A defesa da clareza conceitual é crucial para que o veganismo não perca seu potencial transformador. Não se trata de “purismo”, mas de honestidade intelectual e coerência com a ética que fundamenta o movimento. A inclusão de não veganos na luta pelos animais é bem-vinda, mas não precisa (e não deve) passar pela distorção do que é ser vegano.
A luta pelos animais precisa de todas as táticas (incluindo redução, pressão política), mas o veganismo em si não é negociável. Se o transformamos em estratégia, perdemos o que ele tem de mais poderoso: sua coerência moral. A força do movimento está em sua radicalidade ética — não no sentido de “extremismo”, mas de raiz (do latim radix): uma rejeição profunda e consistente da exploração animal.
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Uma resposta
Infelizmente, é o que mais se tem visto, tanto por uma parcela mais “empreendedora” e comercial, quanto por uma militância de esquerda que insistentemente quer se apropriar do veganismo para distorcer seu fundamento básico. E ai de quem discordar.
Gosto de trabalhar com exemplos: um vídeo recente do Fabio Chaves reagindo à atitude do prefeito de Sorocaba sobre o caso do elefante Sandro.
Uma senhora parece ter ficado incomoda com a forma como o Fabio Chaves se referia ao prefeito (que, sim, é age como um escroto e é bolsonarista), pelo fato de ele ser de direita.
E comentou: “Fabio, sou sua seguidora e tenho grande respeito pelo seu ótimo trabalho. Sou vegana há 8 anos e vegetariana desde nascença. No entanto não me alinho aos pensamentos de esquerda e muito menos sou bolsonarista. Este relacionamento automático que fazem ente ser de direita e ser do mal só aumenta o preconceito político e coloca as as pessoas em apenas duas caixas, como se o mundotivesse apenas duas escolhas na vida. Sugiro deixar os comentários políticos como estes fora da nossa luta por um mundo mais justo e ético pelos animais.”
Não deu outra. Basta ler os comentários abaixo. Parece que ser vegano/a e não estar alinhado com uma mentalidade “de esquerda” deslegitima, cancela ou impede alguém de fazer algo pela causa animal e pelos outros animais. Segundo uma certa militância que se arroga a dona da verdade…