Ser vegano não é ser evoluído

Ser vegano é apenas fazer o que é preciso fazer para não prejudicar os animais

Ser vegano não é ser evoluído
Pintura: Hartmut Kiewert

A armadilha moral do “vegano evoluído”

A ideia de que ser vegano é ser evoluído é bastante problemática, se partimos da consideração de que “ser evoluído” é estar acima dos outros. Mesmo que ser vegano seja reconhecer o mal contra os animais a partir do consumo, usos e impactos, e não querer fazer parte disso, não há motivo algum para não reconhecer isso apenas como algo que devemos fazer. Afinal, ao não fazer, prejudicamos animais quando podemos não prejudicá-los.

Então o veganismo não pode ser sobre nós, sobre como nos sentimos em comparação aos outros numa escala de valores. A ideia do evoluído também se vincula à ideia da excepcionalidade, que se torna um valor problemático como identidade.

Estabelecer e até mesmo valorizar uma distinção em relação a outras pessoas (o que pode ocorrer até de forma irrefletida) cria uma barreira, e uma barreira não favorece o veganismo. E a ideia do vegano como “evoluído” vem na esteira da “câmara de eco” – não tendo ressonância favorável entre não veganos.

A excepcionalidade como barreira

Não há nada em relação ao veganismo e sua própria definição que reflita o ser vegano como “o ser evoluído”; até porque sequer faria sentido, se é apenas sobre fazer o que é preciso e possível fazer para não prejudicar animais.

Nesse reconhecimento, normalizamos a mudança e a busca pelo compartilhamento de um “terreno comum”, que parte de uma ideia de não excepcionalidade. E por não ser excepcional é praticável. Afinal, o “ser evoluído” nos coloca numa “aura de excepcionalidade” e cria até uma ideia exclusivista de “destinados ao veganismo” que não contribui realmente com o crescimento do veganismo.

Acreditar no vegano como evoluído é também se considerar melhor, e isso também é paradoxal, porque o veganismo deve ser considerado exatamente porque não nos consideramos melhores e em posição de submeter outras formas sencientes de vida aos nossos interesses. Portanto, o veganismo é uma ética da humildade, não da superioridade. É uma ética da responsabilidade, não da autoglorificação.

O paradoxo: trocando uma hierarquia por outra

Quem se considera “evoluído” se coloca em um pedestal moral. Isso automaticamente coloca quem não é vegano em uma posição inferior, de “atrasado”. Ninguém gosta de se sentir diminuído, e essa é uma das formas mais eficazes de fechar os ouvidos de alguém para uma mensagem.

Mesmo não intencionalmente, a ideia do evoluído também tira o foco do veganismo dos animais e suas necessidades porque o direciona para o próprio vegano. Isso também passa a ser sobre o ego do vegano e sua identidade de “pessoa boa e consciente”.

Mas ser vegano é na verdade o reconhecimento de que nossa capacidade de dominar e explorar outras espécies não confere o direito moral de fazê-lo. Portanto, abraçar o veganismo é um ato de abdicação de um privilégio injusto, não a aquisição de um novo status de superioridade.

Quem se considera “mais evoluído” por ser vegano está, ironicamente, caindo na mesma lógica de excepcionalismo humano que o veganismo busca desconstruir. Apenas trocou o “ser humano é superior ao animal” por “o vegano é superior ao não vegano”.

Veganismo: o piso ético, não o teto da virtude

O veganismo tem mais condições de ir longe se for tratado como algo prático e normal. Deve ser sobre o que fazemos e não sobre quem somos. Longe de ser um sinal de “evolução” pessoal, o veganismo é a base mínima de uma ética que leva a sério o sofrimento de todos os seres sencientes.

É o piso, não o teto. E quando o entendemos assim, nos tornamos muito mais eficazes em convidar outros a participarem disso conosco, não porque somos melhores, mas porque é simplesmente a coisa certa a fazer quando consideramos a perspectiva dos animais prejudicados por nossos interesses.

Uma herança bem-intencionada, mas falha

A ideia de vincular o veganismo com “ser evoluído” não é recente. É uma herança que vem sendo repetida muitos séculos antes do surgimento do termo vegetarianismo. Encontramos o discurso do “evoluído” nas críticas ao consumo de animais na Grécia Antiga, no desenvolvimento do que seria chamado de vegetarianismo a partir do século 19 e, claro, mesmo hoje.

Vários pensadores ao longo da história acharam uma boa ideia construir o discurso do “evoluído” em relação à recusa em se alimentar de animais, achando que isso seria positivo. Até Tolstói fez isso no ensaio “O Primeiro Passo”, publicado em 1892. Logo, essa ideia não surge somente como uma questão do “sentir-se mais”, mas também até como uma internalização bem-intencionada.

No entanto, hoje podemos suspeitar que pode também não ter dado grandes resultados por sua associação com a condição de excepcional em relação com esse viver – quando, na verdade, sua maior aceitação dependia de uma movimentação em outra direção – do “terreno comum”, do praticável, da normalização.

Do “evoluído” ao “predestinado”: o problema da hierarquia moral

O evoluído também facilmente vincula-se à ideia do “predestinado”, o que também é bem problemático e que vem na esteira de uma visão menos moral do que de elevação individual e espiritual. Ao usar “evolução” no contexto moral (veganismo), mesmo que sem essa intenção, você se alinha, mesmo que minimamente, com uma visão hierárquica, quando o veganismo surge para confrontar hierarquias que estabelecem ideias de excepcionalismos que justificam domínios.

“Evolução”, no sentido biológico, não tem um “objetivo final”. Mas no senso comum, falar que alguém “evoluiu” moralmente implica que há um ponto de chegada, um estado superior e estático. Isso é ilusório. A ética é um processo contínuo de questionamento e refinamento.

Mudança, não evolução: a chave para o “terreno comum”

Quando falamos em mudança em vez de evolução nos colocamos em um terreno mais neutro e acessível. É um conceito universal da experiência humana. O veganismo como uma mudança de perspectivas e hábitos torna-o algo familiar e menos passível de reação defensiva.

É exatamente porque hoje podemos identificar o que mais funciona para aproximar as pessoas é que podemos evitar o que, embora bem-intencionado por parte até de inúmeros pensadores que advogaram uma outra relação com os animais, e oposição a usos e consumos, valendo-se do sentido do “evoluído”, é problemático. Podemos gostar do que eles falam e como falam porque já estamos inseridos nisso, mas ignoramos a perspectiva de quem não está.

A escolha dos termos também define quem ouve e quem ignora o que dizemos. Mesmo quando a intenção é positiva o significado da palavra “evoluído” não perde sua carga hierárquica. A palavra carrega consigo um “DNA semântico” de progresso linear e superioridade. Para quem está de fora, a mensagem recebida não é “venha fazer parte de algo justo”, mas sim “você está atrasado e eu estou na frente”. Isso gera uma reação defensiva imediata e impossibilita a ponte necessária do “terreno comum”.

A normalização do veganismo

A normalização do veganismo passa por enquadrá-lo não como um clube exclusivo de “iluminados”, mas como um passo prático, lógico e acessível para qualquer pessoa que se importe minimamente com a dor, a exploração e a privação de interesses. É sobre responsabilidade coletiva, não sobre evolução individual.

Ética da Superioridade (o “evoluído”): Foca em quem somos (melhores, predestinados), cria barreiras, é exclusivista e paradoxal.

Ética da humildade: Foca no que fazemos (nossas ações e suas consequências). É uma ética da responsabilidade e da abdicação de um arbitrário privilégio.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com foco em pesquisa sobre veganismo e fundador da Vegazeta.

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