
Há veganos que evitam ou até mesmo rejeitam críticas a produtos veganos. Tratam a defesa de produtos veganos como uma proteção “à identidade vegana”. É como dizer que “se o produto é vegano é o que importa”.
Acreditam que agir de outra forma “afasta pessoas do veganismo”, que “prejudica o veganismo”, ainda que, claro, a dinâmica na oferta de um produto nunca trate a busca pelo lucro como uma não prioridade. Afinal, ninguém oferece um produto para não obter lucro. Mas a que preço esse lucro pode e deve ser garantido?
Ignorar que há sim produtos veganos ruins, e não somente bons produtos veganos, não é uma boa ideia. Se uma pessoa não vegana decide experimentar um produto vegano e tem uma péssima experiência, isso favorece uma mudança?
Há pessoas que podem não querer buscar “outra opção vegana” – apenas desistem e ainda podem compartilhar sua impressão com muitas outras que podem usar essa experiência como referência.
Crer que um produto vegano já pressupõe qualidade é um erro e isso tem sido explorado estrategicamente (e capciosamente) até por empresas que querem apenas aproveitar o que veem como um “nicho” que possa proporcionar maior margem de lucro.
Acreditar que produtos veganos são sempre ótimos produtos favorece, por sua postura acrítica, a oferta de produtos de baixa qualidade sustentada pela contraditória perspectiva de que o produto ser definido como “vegano” importa mais do que a qualidade de sua composição – porque já resultaria em uma associação com “qualidade”, mesmo que não tenha.
Esse “imediato reconhecimento” se relaciona à vinculação automática que muitos veganos fazem entre “produto vegano” e “contribuição à causa”, independentemente de intenção – mesmo que o objetivo seja somente o lucro. Claro que uma empresa não precisa ter “intenção vegana” para favorecer o consumo de produtos veganos.
Por outro lado, é nesse mesmo ponto que surge um conflito determinante – porque é a primazia pelo lucro (acima de tudo) que leva uma empresa a oferecer produtos de baixa qualidade explorando a associação entre produto vegano e qualidade.
Portanto empresas podem se valer da percepção do sentido de “vegano” para vender produtos até mesmo por preços mais elevados do que os convencionais (de origem animal) e sem oferecer boa qualidade. E ao fazer isso, o que pode ser visto como positivo, com base no senso comum da “lógica vegana” que abordo em relação com essa realidade, na verdade, tem impacto negativo – e ainda favorece um cenário que pode resultar numa futura multiplicação de uma realidade de mais produtos veganos de qualidade duvidosa, mas promovidos estrategicamente como “melhores”.
Claro que produtos veganos deveriam ter sempre a oferta de qualidade como prioridade diferencial, mas a relação estabelecida na busca pelo lucro (como motivação única ou acima de qualquer outra) já potencializa um problema que não favorece o veganismo ou o que é relevante ao veganismo.
Isso é mais problemático porque o veganismo existe como motivação ética e se há produtos veganos sendo oferecidos que entram em conflito com uma oferta ética de produtos, estamos diante de um antagonismo que não deveria existir. Produtos veganos deveriam sempre partir da premissa de que precisam existir a partir de uma oferta ética. E quando isso não ocorre, inevitável é perceber que os interesses pelo lucro estão sendo colocados acima dos interesses dos consumidores.
Quando converso com pessoas não veganas mais flexíveis, é comum alguém dizer que acredita que produtos veganos tendem a ter mais qualidade – então não oferecer isso é também trair a própria confiança que mesmo não veganos passam a ter em relação a produtos veganos. Afinal, se essa confiança for esvaziada, por que pessoas não veganas vão querer consumir produtos veganos?
Não adianta também um produto ter um preço considerado acessível se esse acesso é ao custo de oferecer um produto de baixa qualidade. Produtos veganos deveriam sempre cumprir um papel que outros produtos não cumprem. Do contrário, serão apenas mais produtos que visam somente lucro – com um investimento que poderia ser usado para melhorar o produto sendo destinado a enganosas estratégias de marketing visando atrair consumidores, algo comum na indústria convencional.
Veganos precisam ser críticos sobre o que é oferecido, já que se mesmo quem é vegano vê problemas em determinados produtos veganos, qual será a reação de quem sequer é vegano? Produtos veganos que podem ser vistos como de qualidade duvidosa por veganos, ou seja, que já têm predisposição a esse consumo, dificilmente terão apelo a quem não é. E não sem razão, já que isso expõe um problema que não pode ser empurrado para baixo do tapete.
Não exigir que produtos veganos tenham sempre qualidade pode culminar no futuro na repetição dos mesmos problemas da indústria convencional – mas com a diferença de que a indústria convencional ainda é dominante e dificilmente deixará de ser algum dia se a oferta de produtos veganos se tornar uma oferta dominante de produtos de qualidade duvidosa.
Observações
A replicação dos vícios da indústria convencional sob rótulo “vegano” pode resultar em uma derrota ética e estratégica.
Tudo que aponto no texto vale para todos os tipos de produtos – que prometem sabores, texturas e experiências que não existem na prática; produtos vendidos como saudáveis ou mais naturais sem sê-los; vendidos como proteicos sem sê-los; produtos de baixa durabilidade (como calçados que precisamos descartar mais rápido, entrando em conflito com o próprio marketing de “sustentabilidade” e “menor impacto”); e uso de ingredientes obscuros (quando deveriam trazer clareza e transparência), etc. Acredito que qualquer vegano que já fez uma análise crítica de produtos veganos pode pensar em exemplos.
O que sempre me incomodou na indústria convencional e tenho visto ganhar espaço também entre produtos veganos (o que não deveria ocorrer), é a afirmação de que um produto é “feito de tal coisa”, sendo que isso representa o mínimo. Essa estratégia que envolve desde produtos alimentícios a não alimentícios, e das mais diferentes categorias, é conhecida como “ingrediente-cortina” – um componente nobre (muitas vezes ínfimo) é usado para mascarar uma base industrial barata.
Há até mesmo algumas alternativas ao couro promovidas como “vegetais” em que as fibras vegetais representam o menor percentual da composição – sendo o restante derivado de poliuretano (PU) ou policloreto de vinila (PVC). Claro que ainda são alternativas livres do uso de animais, mas há uma desonestidade em fazer parecer que é um produto “genuinamente vegetal”.
Como defendi ao longo de todo o texto, produtos veganos, independentemente de categoria, não podem ser oferecidos em desconexão com qualidade e transparência. Fazer isso é reproduzir a desonestidade institucionalizada da indústria convencional.
A armadilha da “identidade vegana” acrítica
- Problema: Tratar críticas a produtos veganos como um “ataque ao veganismo” é um reducionismo perigoso. Isso cria uma blindagem que:
- Desestimula a melhoria: Se não há feedback honesto, empresas não são pressionadas a evoluir.
- Paradoxo: Defender um produto só porque é vegano pode, na prática, ser prejudicial. Afinal, isso afasta consumidores.
A exploração comercial do “rótulo vegano”
- Estratégia de mercado: Há empresas que capitalizam a associação automática “vegano = ético/saudável” para:
- Cobrar preços premium por produtos medíocres.
- Reduzir custos com qualidade inferior, investindo em marketing verde.
- O lucro não pode estar acima da qualidade e da ética.
O impacto nas transições e na percepção pública
- Risco real: Experiências ruins podem:
- Cristalizar preconceitos em não veganos: “Vegano é caro/ruim”.
- Desestimular novas tentativas: Quem experimenta um produto ruim pode não querer mais buscar alternativas.
Por que a crítica rigorosa é benéfica
- Qualidade como estratégia: Produtos veganos precisam ser melhores para atrair interesse de não veganos.
- Transparência: Denunciar empresas oportunistas fortalece a credibilidade do movimento.
- Mudança: Consumidores críticos forçam o mercado a evoluir.
A postura “todo produto vegano merece apoio” é ingênua e beneficia o capitalismo predatório. Boas alternativas dependem de:
- Exigir excelência (ética, sensorial, ambiental),
- Empresas entenderem que “vegano” não é um nicho para explorar, mas um compromisso com o futuro.
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