
Há anos, li pela primeira vez o termo “esquizofrenia moral” sendo usado por Gary Francione em referência à seletividade na consideração e desconsideração dos animais. O termo se aplica, por exemplo, à contradição moral de afirmar valorizar os interesses dos animais não humanos, mas participar da violência contra eles, como por meio do consumo, ignorando o mal inerente a isso.
Na verdade, se aplica a qualquer situação em que podemos encontrar uma contradição entre o que dizemos e fazemos ou até mesmo como naturalizamos um mal (ex: explorar e/ou matar animais para fins alimentícios) como se não fosse um mal (para o animal prejudicado, quando deixa de ser?).
E claro, isso é normalizado coletivamente e mantido dessa forma como se não houvesse nada de errado, como se prejudicar outros animais pudesse e devesse ser visto como um “bem” (na negação ou indiferença ao impacto para o animal como vítima).
Com o tempo, o termo “esquizofrenia moral” passou a ser usado por outros veganos e hoje ainda é. O problema é que “esquizofrenia” é um termo psiquiátrico que se refere a uma condição (um transtorno mental), não a algo que é aprendido e culturalizado, como se alimentar de animais ou participar de qualquer violência contra eles na negação dessa violência como violência (imperativo da conveniência).
Não se ensina um ser humano “a ser esquizofrênico”. Quando ele é, não tem como escolher não sê-lo (é sua própria condição multifatorial individual). Não é algo que depende de sua vontade, diferentemente do que fazemos com os animais.
Isso externa também uma desconexão semântica entre a apropriação do termo e seu sentido, porque são antagônicos, já que um é sobre escolha (ressignificação) e o outro é sobre ausência de escolha (termo original).
Ainda que “esquizofrenia moral” seja uma ressignificação, não deixa de ser uma apropriação problemática e também desnecessária, já que, para explorar as contradições do mal diário e normalizado contra tantos animais, pode-se falar em dissonância cognitiva, desconexão moral, compartimentalização, antinomia ética, etc.
Pode-se acreditar que “esquizofrenia” soa mais confrontador, mais provocador. Nem por isso deixa de ser desfavorável tanto a quem é esquizofrênico por causa de seu sentido banalizante (e irrefletidamente capacitista) quanto também por possibilitar conexões mentais com a patologização de hábitos culturais (“Como assim, esquizofrenia?” – alguém pode até ignorar o “moral”) e dessa forma também gerar rejeição em vez de reflexão.
Enfim, mesmo sendo provocador, como esse termo pode ser melhor do que outros que não têm relação com uma condição psiquiátrica, um transtorno mental? Portanto não banaliza nem suscita associação com transtornos mentais.
Não podemos ignorar que pessoas podem escolher rejeitar a violência contra os animais enquanto esquizofrênicos nunca poderão se livrar da esquizofrenia, mas somente tratá-la para evitar sofrimento e buscar viver da melhor forma possível com ela.
O termo “esquizofrenia” sequer pode ter grande potência nesse contexto de antagonismo ao uso de animais se consideramos que se a “esquizofrenia” estivesse acima de uma vontade, se pensada em relação com seu sentido original, então nada poderíamos fazer para resolver isso.
Mas é exatamente por sequer ter análogo no sentido psiquiátrico de “esquizofrenia” é que a dissonância cognitiva ou desconexão moral que garante a manutenção do uso e consumo de animais, ao operar essa dissociação entre o desejo humano (aprendido) e o mal para os animais, pode ser superada de uma forma que a esquizofrenia não pode ser.
Claro que Francione, por exemplo, não quis dizer isso ao adotar o termo “esquizofrenia moral”, mas como ele utilizou o termo “esquizofrenia” em outro contexto, podemos usar o sentido original para mostrar onde o termo perde força também independentemente de sua ressignificação – se hoje ainda há veganos que acham uma boa ideia usá-lo na crítica ao consumo de produtos de origem animal e ao especismo.
Para um esquizofrênico, sua medicação representa algo que produtos de origem animal impossivelmente podem representar para, por exemplo, consumidores de carne, porque não há uma relação essencial, mas cultural, ainda que possa ser elevada equivocadamente à essencial por esse fator cultural.
Há muitas formas de explorarmos como culturalmente as pessoas mantêm-se desconectadas dos interesses mais importantes dos animais, e como tudo ao redor delas favorece essa continuidade. Sem dúvida, sobre isso, nada é mais relevante do que pensar a normalização da irrefletida violência contra os animais como cultura e, hoje ainda indiscutivelmente, dominante. E ao problematizá-la a partir desse reconhecimento, podemos aperfeiçoar de forma mais eficiente o que fazer para gerar mais transformação do que rejeição. Afinal, mudanças dependem de pontos de conexão.
Observações
A esquizofrenia é um transtorno mental complexo e grave, envolvendo sofrimento real, psicose, e não é uma escolha. Usar o termo para descrever uma contradição moral aprendida e culturalmente reforçada banaliza a esquizofrenia porque vale-se de uma condição multifatorial séria e estigmatizada como uma metáfora sobre “agir de forma contraditória”.
A esquizofrenia não desaparece com base na vontade de quem tem esquizofrenia. É uma condição com a qual se lida por toda a vida por meio de tratamento. A dissonância moral em relação ao uso de animais pode ser resolvida por meio de conscientização, educação e autorreflexão. Enfim, são processos fundamentalmente diferentes.
Se falamos em “esquizofrenia moral” para uma pessoa não vegana, ela pode manter o foco somente no termo médico e perder completamente o ponto moral. Por exemplo: “Esquizofrenia? Do que você está falando?”
Alternativas mais precisas e eficazes
Dissonância cognitiva: O conceito e teoria de Leon Festinger descreve o desconforto mental que surge quando se mantém crenças ou valores contraditórios (ex: “gosto de animais” vs. “como animais”). Para reduzir esse desconforto, as pessoas negam ou ignoram a contradição. É um mecanismo psicológico universal, não uma patologia.
Desconexão moral: Conceito desenvolvido por pesquisadores como Albert Bandura. Descreve os processos psicológicos específicos que permitem também que pessoas boas cometam atos cruéis contra animais ou não vejam problema em financiar violência contra eles. Isso inclui:
Desumanização/desanimalização: Ver a vítima como inferior, sem sentimentos ou merecedora de seu destino.
Deslocamento de responsabilidade: “A culpa é dos açougueiros, dos chefs, da indústria.”
Difusão de responsabilidade: “Todo mundo faz isso.”
Distorção das consequências: “Eles não sofrem tanto assim” ou “a morte é indolor.”
Neutralização de culpa: “Eles foram criados para isso.”
Compartimentalização: A mente “separa” o “animal em consideração” (o cão que é amado) do “animal para exploração” (o boi reduzido a bife) em categorias distintas e incomunicáveis, evitando o conflito entre os valores.
Antinomia ética: Um termo filosófico que denota a existência de duas leis ou princípios morais contraditórios e igualmente válidos em conflito. No caso, o “princípio da consideraçao de interesses” entra em conflito com o princípio cultural de “é aceitável explorar animais para alimentação”.
Usar um termo como “esquizofrenia moral” cria uma barreira imediata porque patologiza e aliena o interlocutor. Em contraste, termos como “dissonância cognitiva” ou “desconexão moral” são descritivos, não pejorativos, e explicam o mecanismo psicológico em jogo sem insultar. Também são universais porque reconhecem que todos estamos sujeitos a esses vieses em diferentes áreas da vida, o que pode criar um lugar comum para a discussão.
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