Como ver o veganismo como identidade prejudica o veganismo

O problema de ver o veganismo como identidade pessoal é que o foco se desloca dos animais para o vegano, o que entra em conflito com o próprio sentido do veganismo. Isso ocorre também quando veganos passam a performar para veganos.

Publicações ou vídeos de “reacts” que debocham de não veganos também são um reflexo disso – ou qualquer exemplo em que se prioriza o que não visa estimular reflexão, mas somente concordância de quem já é vegano.

Agradar somente veganos não ajuda o veganismo a crescer – não muda realidades. Veganos são minoria. Também não motiva não veganos a mudarem seus hábitos. Cria-se, por contradição, um grupo fechado, já que ainda assim é pensado como se não fosse. Veganismo é sobre transformação, não autoafirmação.

O crescimento do veganismo depende de algum tipo de interação com não veganos, mesmo quando mediada ou indireta. Se digo que só quero ficar entre veganos, manter comunicação somente com veganos, também fortaleço uma reducionista percepção identitária do veganismo mesmo quando o meu incômodo nunca deixa de ser o mal normalizado e praticado contra os animais.

A resistência à autocrítica dentro do movimento vegano também é um reflexo disso – porque se a autocrítica é sobre apontar falhas, visando chamar atenção para mudanças que não estão ocorrendo ou pelo menos não na proporção desejada, rejeitá-la é sobre proteger “a identidade vegana”, desconsiderando que o que importa não somos nós (do contrário, a motivação seria autocentrada), mas o impacto que causamos em outras vidas por meio de nossas escolhas e forma de viver.

Qualquer atitude que temos que seja defensiva porque parece um “ataque” ao “ser vegano”, e isso ocorre mesmo quando a crítica parte de veganos, deve ser vista sob a perspectiva do impacto na vida dos animais – porque é isso que realmente importa. O “ser vegano”, no que preconiza o veganismo, importa como parte de uma coletividade que pode gerar transformações.

Disputas ou afirmações sobre ser ou não “mais vegano” ou ser “vegano de verdade” também recaem em um reducionismo identitário (autocentrado), porque o que importa não é a percepção que temos dos outros e sim como suas maneiras de viver impactam mais ou menos na vida dos animais.

Não podemos esquecer também que a mudança para transformar a realidade dos animais sequer pode depender somente de veganos – que são minoria, logo não podem promover mudanças estruturais sozinhos. Portanto é preciso envolver até mesmo pessoas não veganas, mas que podem ser aliadas.

Além disso, veganismo é apenas um termo que surgiu para definir um movimento contra o uso, exploração e impacto evitável na vida dos animais (a partir do estímulo a uma outra consciência de relação com os animais), e vegano é o sujeito dessa oposição.

Quando digo “apenas” é porque quero frisar que o mais importante não é o termo, mas o que ele defende – porque o apego ao termo nunca pode ser mais sobre nós do que sobre os animais como vítimas das ações humanas.

Se o foco é menos sobre os animais e mais sobre nós (e o que pode ocorrer também de forma irrefletida), como os que surgem também com a crença do “nós” e “eles”, que partem de veganos em relação a não veganos, ou até mesmo de veganos em relação a outros veganos, se isso for sempre tratado como inconciliável (havendo apenas antagonismos, sem qualquer possibilidade de diálogo), então surge ou mantém-se uma divisão que entra em conflito com os objetivos do veganismo.

É perceptível que veganos, sozinhos, não podem transformar a realidade. Uma crescente defesa do veganismo como identidade, que gera os conflitos que apresentei, também não favorece o veganismo. Veganismo não pode ser sobre distinção – deve ser sobre inclusão.

Crer-se melhor por ser vegano, fazer julgamentos que não ajudam a aproximar pessoas do veganismo ou de uma mudança de hábitos também são exemplos desfavoráveis. Além disso, se fechar em uma “bolha vegana” também não, assim como insistir em conflitos que não impactam na redução da ação humana contra os animais.

Claro que pessoas podem se fechar em uma “bolha vegana” como resultado de um desânimo e não de um reducionismo identitário, mas o que é relevante ao veganismo só pode prosperar se não deixamos de reconhecer a importância de um não fechamento, de uma inclusão.

Não podemos esquecer também que para os animais o que importa são nossas ações que impactam em suas vidas, não nossos conflitos humanos.

Veganismo como ferramenta

Quando o veganismo vira uma “identidade”, há dinâmicas de grupo que priorizam a autoafirmação (“o ser vegano”) em vez da mudança concreta (“reduzir o sofrimento animal”). Isso explica:

  • A rejeição à autocrítica: Se o veganismo é parte da identidade pessoal, críticas são vistas como ataques à própria existência, não como oportunidades para melhorar estratégias de advocacy.
  • A hierarquização entre veganos: Disputas sobre quem é “vegano de verdade” ou mais “puro” são sintomas de uma lógica identitária, não ética. O que importa é o impacto nas vidas dos animais, não o status individual.

 

Importância da inclusão

O veganismo, por definição, busca abolir a exploração animal — um objetivo que depende de convencer a maioria não vegana. Isso exige:

  • Diálogo, não excomunhão: Em vez de tratar não veganos como “inimigos”, é mais eficaz reconhecer que a maioria foi socializada para normalizar o consumo de animais e que a mudança é um processo.
  • Estratégias de persuasão: Conteúdos que geram reflexão são mais úteis do que aqueles que apenas confirmam as crenças de quem já é vegano.

 

A “bolha vegana” e o paradoxo da minoria

Veganos são cerca de 3% da população global, conforme pesquisa do Instituto Ipsos. Se o movimento se comunica apenas consigo mesmo:

  • Perde-se o contato com não veganos, que são justamente aqueles cujas ações precisam mudar para que o veganismo cumpra seu propósito.
  • Criam-se estereótipos negativos: Reações agressivas ou sarcásticas a não veganos podem afastá-los e favorecer uma imagem negativa de veganos.

 

O risco do “nós vs. eles”

A divisão entre veganos e não veganos pode ser tão contraproducente quanto outras polarizações identitárias. Isso leva a ignorar potenciais aliados. Além disso, conflitos internos desnecessários também desviam energia que poderia ser usada em conscientização e educação. O veganismo é um movimento de justiça, não um clube exclusivo.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

4 respostas

  1. É um debate que também veio à tona recentemente por causa de um ativista chamado Gary Yourofsky. Não o conhecia, mas ele parece ser bem conhecido nos EUA. Há um reels no Instagram de uma conversa entre ele a ativista Jamie Logan.

    Pelos comentários, apesar de não ser fluente em inglês, deu pra perceber que há um “racha” também por lá nesse sentido. E isso, parece, por causa de falas polêmicas do tal Gary.

    Nos comentários se fala muito de que “direitos humanos e direitos animais não devam ser confundidos”, enquanto outras pessoas falam que eles estão necessariamente interligados.

    Outra coisa curiosa é que tem-se colocado sobre o movimento vegano uma cobrança para pautar ou se posicionar em outras causas sociais e políticas. Por exemplo: numa passeata feminista você não vê feministas atacando a indústria de laticínios e ovos e problematizando a exploração sexual dessas fêmeas. Não apenas isso: o mais comum é depois da passeata ou do encontro fechado serem vendidos ou servidos produtos que contenham ovo e leite nos ingredientes. E se você questionar isso, provavelmente vão lhe responder: “isso não faz parte da nossa luta, não está na nossa pauta.”

    Outro exemplo: na Parada Gay ou do Orgulho LGBT ou Pela Diversidade Sexual, você vê o pessoal falando sobre a violência contra outros animais? Provavelmente não. E por quê? “Não está na pauta. Aqui o que está em defesa é a liberdade e o direito do nosso grupo, não de animais.” Bom, isso é óbvio.

    No movimento antirracista a mesma coisa. Mas só em você fazer a observação já corre o risco de ser visto com suspeita e ser chamado de racista, e ninguém quer ser “cancelado” por questões raciais, mesmo sem provas.

    Nenhum desses movimentos se vê na obrigação moral de defender os animais em suas pautas, de trazer a forma como os interesses e direitos dos animais não humanos são ignorados para dentro dos seus círculos e discussões, certo? Pois é.

    Tem um vídeo circulando nas mídias em que a atriz Natalie Portman fala sobre veganismo num palco pra uma plateia imensa. O contexto da fala dela é sobre feminismo ela fala da relação que há entre as formas de opressão e violência que fêmeas humanas e não humanas sofrem. Até aí, todos nós, pelo menos de os orientação vegana, concordamos que há essa “interseccionalidade”. Mas aí um cara foi lá nos comentários e perguntou: “qual a posição dela sobre o genocídio em Gaza?”

    Pronto. Várias pessoas responderam que a pergunta não cabia ali, que estava fora de contexto e, pior, dava a entender que, dependendo do posicionamento da atriz em relação ao que Israel está fazendo na Palestina, é que seu discurso teria validade, que aí sim é que ela teria “moral” pra criticar ações de violência e opressão. Como se sabe, ela é israelense. Não sionista.

    Eu citei esse exemplo da Palestina porque foi exatamente nesse ponto que criticaram tanto o tal do Gary quanto a Jamie, por ela dar espaço a ele no podcast. As pessoas disseram algo do tipo “não posso concordar com um cara que menospreza o fato de mulheres e crianças estarem sendo massacradas e ainda é um sionista”, algo assim. Ou por causa de uma fala dele de que atiraria num leão para salvar a vida de um cervo (????).

    Outras pessoas ponderaram de outra forma: o que ele defende é que não se confunda a luta pelos direitos dos animais com direitos humanos. O veganismo é sobre a injustiça e o uso e abuso que a espécie humana inflige sobre as outras criaturas vulneráveis e oprimidas há milênios, opressão essa que depois foi institucionalizada contra humanos por questões de raça e de sexo.

    É de uma desonestidade intelectual tremenda achar que um vegano tenha que se posicionar diante de um fato da natureza em que um grande carnívoro, por instinto de sobrevivência, mate um outro animal, ruminante ou não. Isso é a natureza. Desde quando a gente tem que se intrometer nessa história? Quando um caçador “esportivo”, do alto da sua arrogância e covardia, pega num rifle e atira na cabeça de uma onça ou da criatura que onça comeria se a pegasse, aí sim a gente tem a obrigação moral de intervir e se posicionar.

    Então me parece o seguinte: que os direitos humanos, para os humanos, estão acima dos direitos dos animais, pelo simples fato de que a premissa ética e a lei em defesa de humanos e animais é feita (desculpe a obviedade) por humanos.

    Então surge a dúvida: será que se pode mesmo dizer que “não há direitos animais se não considerarmos os direitos humanos porque somos todos animais”?

    Será que isso não é só mais uma forma de antropocentrismo velado, de colocar os interesses humanos acima, ou à frente, da causa animal, QUANDO FOR CONVENIENTE? Não é colocar o “lobo” com os cordeiros?

    Nessas horas me lembro do livro do Orwell, A revolução dos bichos (ou A fazenda dos animais, dependendo da tradução). O modo como aqueles que, em princípio, se diziam estar ao lado e em defesa dos seus companheiros contra os abusos do fazendeiro, começa a mudar aos poucos a se afastar dos princípios animalistas à medida que vão obtendo mais privilégios e poder… culminando naquela cena altamente grotesca e ilustrativa do banquete no final do livro.

    Curiosamente, o livro do Orwell foi uma crítica ao regime comunista (stalinista), à esquerda, justamente essa esquerda que historicamente se diz na vanguarda pela defesa dos oprimidos e escravizados.

    Para finalizar, vale citar algo que aconteceu comigo mesmo: numa postagem no Instagram do perfil do MST há a seguinte notícia: “Cooperativa da Reforma Agrária inaugura agroindústria de ovos caipiras e orgânicos”.

    Nesse momento, me lembrei do chamado “veganismo poular”, porque há, segundo alguns veganos de esquerda, essa relação entre os dois movimentos, o dos animais e dos sem terra (em teoria). Então perguntei, sem qualquer intuito de polemizar: “Pergunta sincera: o que o MST pensa a respeito do veganismo popular?”

    Uma pessoa respondeu: “Não tá na pauta. O agricultor familiar nem sabe o que é.”

    Mas, o movimento vegano, parece, tem que se solidarizar e se posicionar a favor do agricultor familiar, ou do pobre, ou do negro, ou da mulher (cis ou trans) e evitar criticar a exploração econômica dessas galinhas, por exemplo, porque aí é um oprimido que precisa sobreviver, se manter, se alimentar, mesmo que tenha que oprimir outro mais vulnerável que ele…

    Dois pesos e duas medidas? Vale a provocação.

    Talvez quem defenda de forma ferrenha os interesses humanos acima de qualquer coisa quando eles entram em desacordo com os interesses básicos de outros animais e represente até uma ameaça a eles (aos animais), só tenha receio de dizer abertamente: defendo a causa animal, sem dúvida, mas só até a parte em que ela não interferir na minha tradição, na minha cultura, na minha crença…

    “Ah, mas uma coisa não anula a outra”, é o que mais leio/ouço.

    É… não anula até o momento é que uma das partes, a humana, tiver que, com isso, perder algum privilégio nessa história…

    Parabéns pelo texto. Se faz urgente nesse momento.

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