
Dizer que todas as pessoas que não fazem ativismo vegano não fazem porque não querem seria ignorar a realidade em que muitas pessoas estão inseridas. Longas jornadas de trabalho roubam nossa energia, impactam na forma como vemos o tempo e o que podemos fazer com ele. Quando o trabalho é exaustivo, mesmo pessoas que gostariam de fazer ativismo vivem o conflito da falta de energia para fazê-lo.
A rotina, se esmagadora, destrói a motivação e vive-se o conflito do querer o que não se pode ter, que é a realização do que depende do tempo fora do trabalho. Em “Elogio ao Ócio”, de 1935, o filósofo e matemático Bertrand Russell já discutia como as limitações impostas pelo trabalho minam a motivação para o que está fora dele – um tema que imagino que o surpreenderia mais hoje se soubesse da resistência que existe a uma transformação nas relações de trabalho.
Russell defendia jornadas de quatro horas de trabalho. O jornalista e ativista Paul Lafargue defendeu algo parecido, embora em um ensaio bem menor – “O Direito à Preguiça”. Você pode discordar e até achar absurda a defesa de Russell e Lafargue, mas ignorar que jornadas exaustivas de trabalho impedem o envolvimento de pessoas em causas, incluindo o veganismo, é um erro. Claro que isso também dificulta um apelo às classes populares.
A resistência vem exatamente pela força cultural da produtivista lógica capitalista – criar mecanismos para tornar o trabalho mais eficiente, produzir mais e sem que os ganhos da produtividade favoreçam uma redução das horas trabalhadas.
Bertrand Russell, assim como outros pensadores progressistas, defendia que a industrialização e a tecnologia deveriam servir às relações de trabalho, melhorá-las, não agravá-las, possibilitando que todos tivessem mais tempo.
Em sua visão, o mundo tem condições materiais de garantir que as pessoas vivam de forma digna sem trabalho excessivo – premissa que foi radicalmente corrompida pelas novas dinâmicas do capitalismo. Desde a publicação do ensaio do filósofo britânico, a produtividade aumentou imensamente e os trabalhadores não ganharam mais tempo.
O trabalho como identidade já era questionado por Russell, assim como por Lafargue. O trabalho deve ser parte da vida, não a própria vida. Se o trabalho nos deixa exaustos, o que conseguimos fazer fora dele? Não há dúvida de que isso impacta também na disposição que veganos têm para fazer ativismo.
Ignorar que o crescimento do veganismo depende do tempo que veganos têm para fazer ativismo e se comunicar com outras pessoas é um erro, principalmente considerando os problemas que aponto no artigo “Movimento vegano tem alta desistência de ativistas”.
E se há uma maioria sobrecarregada com trabalho, torna não apenas difícil aproximá-las do ativismo ou mantê-las no ativismo como até mesmo aproximar pessoas do veganismo – porque mudar a forma como vivem pode ser visto como algo “trabalhoso”, mesmo quando alguém não negue reconhecer o impacto que há em não ser vegano – como prejudicar tantas vidas (opressão animal).
Sendo honestos, sabemos como muitas pessoas resistem a sair da “zona de conforto” e isso se torna mais grave quando se está imerso em uma rotina exaustiva que visa mantê-los em um estado de “não mudança”, algo que também é impactado pelo trabalho exaustivo.
Afinal, um corpo cansado desejará descanso, não algo que infelizmente ainda possa ser visto por muitos como “trabalho”, no sentido de “trabalhoso”. Temos uma sociedade cansada hoje, algo que tem sido discutido na atualidade por vários filósofos – e difícil é envolver mais sujeitos de uma sociedade cansada em ativismo. E a lógica produtivista também impacta no ativismo na forma de uma queda na “disposição ativista”. Portanto não afeta somente quem não faz ativismo, mas também quem faz e, eventualmente, se sente desmotivado e desiste.
É um grande erro ignorar que o atual modelo econômico e de trabalho não afeta a capacidade que veganos têm de se envolver com o ativismo. O modelo atual acaba servindo contra a própria evolução do veganismo – se há uma maioria cansada demais para considerar ou se engajar.
Apresento no artigo “Movimento vegano tem alta desistência de ativistas” algumas simples sugestões para tentar envolver também quem não tem tempo ou mesmo motivação, mas isso não substitui a importância de considerar como hoje o modelo dominante de trabalho está na contramão do fortalecimento de um movimento vegano e do que é relevante ao veganismo.
Observações
Muitas pessoas reconhecem os problemas éticos do consumo de animais, mas ainda assim resistem à mudança porque:
- Enxergam o veganismo como algo “trabalhoso” – requer pesquisa, ajustes na alimentação, enfrentar críticas sociais, etc.
- Não têm energia mental para se dedicar a uma causa – o cansaço do trabalho as mantém em um estado de inércia.
- O ativismo exige tempo e disposição – e ambos são vistos como escassos quando a rotina é dominada por longas jornadas e preocupações materiais.
Isso explica, em parte, a alta desistência de ativistas veganos: mesmo quem começa motivado pode esbarrar na realidade de um cotidiano que não permite dedicação contínua.
O sistema econômico como obstáculo ao veganismo
O sistema econômico favorece produtos de origem animal culturalmente normalizados por sua alta disponibilidade e maior variabilidade de preços em todas as classes sociais (da carne ao ovo e aos ultraprocessados mais baratos).
Mantém as pessoas em um estado de “sobrevivência” – trabalhar para pagar contas, sem espaço para reflexão ética profunda.
Incentiva o individualismo – o “cada um por si” em detrimento de movimentos coletivos como o ativismo vegano.
Isso cria uma armadilha: pessoas exaustas têm menos capacidade de questionar o status quo, inclusive em relação ao consumo e à exploração animal.
Possíveis caminhos
- Ativismo de baixo esforço – Ações que demandem pouco tempo (Por exemplo, compartilhar publicações em redes sociais produzidas por outras pessoas).
- Diálogo com movimentos trabalhistas – Mostrar como a luta por melhores condições de trabalho também beneficia o ativismo vegano (e vice-versa).
Em “Elogio ao Ócio“, Russell denuncia: o sistema nos mantém exaustos para que não questionemos suas estruturas. Isso se aplica perfeitamente ao veganismo:
- Jornadas exaustivas, trabalho precarizado ou desemprego = veganos sem energia para ativismo.
- Resultado: Poucos veganos militam ativamente.
Observação final
Ignorar o impacto do modelo de trabalho no ativismo vegano é um erro. A luta pelo veganismo é afetada por condições materiais e psicológicas como consequência do modelo econômico e de trabalho vigente. Se queremos um movimento vegano mais forte, com mais ativismo, precisamos questionar o que torna tão difícil para as pessoas terem tempo, energia e motivação para se engajar. Como Russell e Lafargue sugeriram, a liberdade de ação – inclusive para mudar hábitos e lutar por causas éticas – depende também da redução da opressão do trabalho sobre a vida. Enquanto se exigir que as pessoas vivam para trabalhar, será mais difícil construir um mundo em que as pessoas decidam viver sem explorar os animais.
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