Como o exagero de uma abordagem positiva prejudica o veganismo

Há um foco cada vez maior em uma abordagem positiva em relação ao veganismo. Isso vem com a crença de que as pessoas querem saber “somente de coisas boas”. O primeiro ponto que pode ser problematizado sobre isso é que normalmente são pessoas veganas ou em transição que se importam com isso – o que favorece a premissa de veganos em relação com veganos.

Ou então isso pode atrair curiosos, mas curiosos, segundo o que já foi comprovado também a partir de resultados de campanhas da Veganuary e de pesquisas da Faunalytics, não se sentem suficientemente motivados para uma mudança real ou não transitória – experimentam algo por um tempo e depois abdicam. Isso ocorre porque não há uma forte motivação e isso tem ocorrido cada vez mais em relação com uma abordagem positiva, que tende a evitar a seriedade.

E por evitá-la, por passar a vê-la até mesmo como uma barreira, ignora as consequências disso. Defender uma abordagem unilateralmente positiva não afasta os problemas que dificultam o crescimento do veganismo ou do que é relevante ao veganismo.

Promover somente notícias positivas não reflete uma aproximação com “um mundo vegano”. São apenas recortes que se escolhe dar – e pode ter um efeito até mais prejudicial do que positivo se a exploração de animais para fins de consumo está aumentando, não diminuindo, e com o envolvimento mais frequente de pessoas.

Diante de tais notícias positivas, veganos comemorarão, se sentirão bem com isso e consigo mesmos. Isso funciona como uma propaganda que não leva a mais engajamento, porque faz parecer que “tudo está caminhando bem”, “que estamos vencendo”. Enfim, apenas afaga a consciência vegana, “a identidade vegana”.

Suspeitei há muito tempo, e confirmei isso por meio de ferramentas do Google Trends, que muitas notícias positivas em relação com o veganismo só repercutem entre veganos ou pessoas que já estão mudando hábitos. Não costumam atrair não veganos, e porque sequer instigam reflexão neles – não os desafiam a pensar, considerar.

No fim, soam para não veganos mais como “validações veganas” do que um convite para a consideração. Não há nada de reprovável em querer se sentir bem, mas notícias que geram isso em nós podem, em muitos casos, não ter o que as tornaria relevantes para quem não é vegano, para atrair quem não se importa hoje com o veganismo ou com o que é relevante ao veganismo.

Já me surpreendi com veganos reclamando de textos que são voltados para quem ainda não é vegano – isso reflete algo preocupante, que é a busca por validação da própria identidade ou de conteúdo que seja voltado a uma bolha. Como o movimento vegano é pequeno, isso parece enviar uma mensagem de que não importa quem não é.

Se o veganismo visa mudar o mundo e não somente nós mesmos (uma minoria), esse tipo de reação externa um problema que é ver e tratar o veganismo como identidade em vez de uma causa voltada a uma transformação na nossa relação com outros animais; e que nunca pode perder de vista que deve ser sobre envolver mais pessoas para que haja uma mudança realmente significativa.

O foco exagerado na abordagem positiva não mobiliza ativismo (pode até favorecer uma desmobilização), não leva a uma compreensão de que mudarmos somente nós mesmos não é suficiente.

Como o objetivo do veganismo é a libertação animal, precisamos sempre buscar colaborar ativamente de alguma forma e não apenas celebrar “notícias positivas”; querer, em relação ao veganismo, saber somente delas, e esperar que “mais apareçam” – como se o nosso papel fosse aguardar por mudanças.

O foco exagerado na abordagem positiva favorece o “veganismo passivo”, e quando viver o veganismo de forma passiva se torna dominante, difícil é pensar em um futuro realmente transformador para os animais.

Como já defendi em outros artigos, a mudança que exige mais engajamento é a que não está ocorrendo – há mais animais sendo mortos e mais animais sendo consumidos – as médias de consumo estão crescendo.

Alguém pode dizer: “Olhe, há mais produtos veganos no mercado!” Ok, mas isso está impactando pelo menos minimamente na redução da exploração animal ou tem efeito nichado e sequer surge para não ter? De qualquer forma, a disponibilidade de produtos veganos também não ajuda a resolver o problema dessa violência nem hoje nem no futuro sem a mudança cultural que discuto no artigo “Por que a oferta de produtos veganos não transformará a realidade dos animais“.

Motivações fracas levam a resultados fracos. O foco não pode se voltar mais para os prazeres individuais do que para a libertação animal. Nenhuma grande mudança vai ocorrer se a maioria dos veganos se sentir confortável em ser apenas consumidores – algo que se reflete em relação também ao que foi explorado sobre o foco exagerado em “notícias positivas”.

Observações

Um levantamento da Faunalytics que aponta uma grande desistência de pessoas mudando hábitos por motivos individualistas permite concluir que fracas motivações não sustentam mudanças radicais. Por outro lado, motivação ética gera mais compromisso de longo prazo – incluindo um comparativo com “motivações positivas”. Enfim, sem base sólida, qualquer motivo serve como pretexto para a desistência.

Evitar “assuntos negativos” (como o sofrimento animal) para “não afastar pessoas” atrai justamente quem não está disposto a confrontar o status quo, e que em breve pode não ver motivo para não continuar se alimentando de animais.

A crença de que “ser vegano basta” ignora lições históricas de lutas por direitos.

Ecochamber vegana:

A comunicação positiva opera principalmente dentro da bolha vegana, tendo mais efeito como “validação identitária”, sem alcançar efetivamente não veganos. Dados obtidos por meio do Google Trends e estudos (como os da Faunalytics) corroboram essa limitação.

  1. Falha na conversão:
    A atração de “curiosos” via positividade raramente gera mudanças duradouras, como visto em resultados da Veganuary. A ausência de desafio crítico não cria motivação profunda para transição sustentável.
  2. Descompasso com a realidade:
    O foco em narrativas positivas pode mascarar a escalada da exploração animal (mais animais criados para exploração, maior consumo global de produtos de origem animal). Isso cria uma desconexão perigosa entre a celebração vegana e a urgência da crise.
  3. Identidade vs. Causa:
    Quando veganos rejeitam conteúdos voltados para não veganos por serem “desconfortáveis”, revela-se uma priorização da autoafirmação identitária sobre o objetivo transformador do movimento.

A positividade tática tem seu lugar, mas quando vira estratégia dominante, dilui o caráter disruptivo que faz do veganismo uma força ética relevante.

O perigo da autorreferência:

Quando veganos celebram estar entre veganos, criam uma bolha identitária. Isso gera:

    1. Autoindulgência: A luta vira autocomplacência (“já fiz minha parte”);
    2. Falta de diálogo com o mundo real: Como converter não veganos se o movimento só fala para si mesmo?

A história já mostrou que movimentos perdem potência quando preferem aceitação à transformação estrutural.

Não se trata de abandonar o positivo: Celebrações de vitórias, inovações e crescimento da comunidade têm seu lugar na manutenção do moral e visibilidade. Trata-se de reconhecer sua insuficiência e riscos – principalmente quando usado como estratégia dominante ou exclusiva.

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Jornalista (MTB: 10612/PR), mestre em Estudos Culturais (UFMS) com pesquisa com foco em veganismo e fundador da Vegazeta.

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