
Há duas categorias de produtos veganos pouco acessíveis a muitos brasileiros hoje: produtos que custam caro, mas sobre os quais se visa um aumento da oferta e de estratégias que podem favorecer a redução de preços; e produtos caros que não são nichados por esse motivo, e sim que realmente são destinados a consumidores com maior poder de compra.
Claro que é um direito de qualquer empresa definir para quem quer destinar seus produtos, mas nem por isso devemos ignorar que quando uma empresa opta por oferecer produtos veganos para quem é mais privilegiado economicamente, isso não favorece mudanças em consonância com os objetivos do veganismo. Afinal, ela opera a partir de uma lógica econômica excludente que inviabiliza maior acesso a esses produtos.
Logo, ao fazer isso, a barreira econômica impede que haja um alcance diversamente significativo – e que não é pensada como algo a ser superado no futuro e sim como algo que corresponde a uma grande restrição do perfil de consumidores como escolha estratégica de lucro.
Isso também se torna contraditório quando uma empresa que não se preocupa em favorecer o acesso a seus produtos se coloca como “disruptiva”, porque não existe “disrupção” ao operar a partir de uma lógica exclusivista – transformações não fazem sentido no campo do exclusivo e sim do inclusivo. Não há disrupção sem conexão com democratização e inclusão cultural.
A verdadeira disrupção não é um atributo de produtos e sim de impacto social. E esse impacto só existe quando há democratização real. A disrupção depende de extensão, de alcance, de chegar a diferentes consumidores – portanto só faz sentido como parte de uma transformação cultural.
Logo, operar nessa “lógica” é contraditório quando se fala que o objetivo é favorecer “uma grande mudança de hábitos” ou “grande superação de costumes” – porque tudo isso se relaciona essencialmente, e porque precisa, com uma pluralidade que nesse caso não existe.
Então quando há um discurso em que se coloca, por exemplo, um produto promovido como “alternativa promissora” a um produto de origem animal, e se fala em “potencial de transformação”, qual transformação realmente isso pode gerar se é uma alternativa criada para não atender mais do que um pequeno grupo de consumidores? O que já impõe uma grande limitação.
Não é sobre problematizar alguém querer oferecer produtos somente para uma classe privilegiada de consumidores, mas sim problematizar isso em relação com a comum vinculação à ideia de que qualquer produto vegano deve ser celebrado como se estivesse dentro de uma lógica de grande favorecimento do veganismo – mesmo que na prática não contribua com uma mudança sistêmica e porque também há muitos casos em que sequer isso é uma finalidade.
Também não podemos ignorar que empresas que vendem produtos veganos caros fortalecem uma percepção do veganismo como inacessível. Isso se torna mais problemático quando é resultante de intenção (proposital) e não limitação (não proposital). Claro que esses produtos não são essenciais, mas não deixam de levar a uma associação com a ideia de que ser vegano é caro e isso também pode ser explorado por quem antagoniza o veganismo.
Por outro lado, empresas que oferecem produtos para quem tem maior poder de compra ainda podem participar de uma democratização de consumo de alternativas aos produtos de origem animal – como usar, por exemplo, o lucro obtido a partir desses produtos para subsidiar, por exemplo, uma linha de produtos que seja acessível a mais consumidores.
E se realmente se importam com mudanças favoráveis ao veganismo, essas empresas podem destinar recursos – não doações simbólicas como estratégias de marketing – para santuários de animais ou iniciativas independentes que favoreçam o veganismo.
Claro que também pode-se dizer que ninguém precisa dos novos produtos veganos como alternativas aos produtos de origem animal, mas isso ignora a subjetividade do interesse – que passa também pelo reconhecimento de que há muitos consumidores, por exemplo, que não apenas não têm disposição para cozinhar como não gostam de cozinhar.
A questão também não precisa ser sobre consumo diário, já que às vezes mesmo pessoas que cozinham regularmente querem consumir algo diferente e que não exige tempo na cozinha.
Observações
Há uma distinção crucial entre produtos caros por limitação tecnológica/matéria-prima (que podem se democratizar) e produtos caros por design de mercado (que nascem e permanecem como símbolos de status):
- Produtos com “DNA democratizante”: Buscam escala, simplificam processos, usam matéria-prima local.
- Produtos com “DNA elitista”: Cultivam exclusividade, dependem de importados, adotam estética “premium”.
Produtos veganos caros por escolha estratégica reforçam mais a percepção do veganismo como inacessível.
O mito da “contribuição automática”: Nem todo produto vegano merece celebração acrítica. Ações que não buscam superar barreiras de acesso (ou pior: as cultivam) têm impacto marginal na mudança sistêmica.
Também é preciso que a oferta de novos produtos ocorra de uma forma que fique visível que há maior disponibilidade de produtos acessíveis do que inacessíveis. Segundo a psicologia do consumo, o cérebro humano associa “disponibilidade visual” à “normalidade social”.
A democratização do acesso a produtos veganos e a uma alimentação vegana de qualidade também deve envolver políticas públicas e subsídios.
A reflexão não vale apenas para produtos, mas para tudo que é pensado hoje na relação entre consumo e veganismo.
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