A maior parte da dor dos animais vem do apetite humano

Ilustração: Stéphanie Valentin

Sentiu-se culpado quando percebeu que a maior parte da dor dos animais no mundo vem da vontade de comer – não deles, da nossa. “Nunca imaginei que essa cadeia de sofrimento fosse tão extensa e que aumentasse a cada ano. Que direito temos de criar vocês para a morte? Que direito estranho é esse sobre vidas que não são as nossas?”, disse olhando para um bezerro que se coçava na porteira.

Via bovinos, suínos, galináceos e outros animais usados para servir à humanidade com olhar renovado. “Não me recordo de já ter olhado com atenção para um bezerro antes. Talvez você ache que eu esteja te incomodando, ou não, mas quero que saiba que já desconheço esse apetite, que desconectou-se de mim e foi lançado para longe por vontades maiores. Posso dizer, e acho que devo, que sinto-me aliviado.”

A tranquilidade do bezerro, a candura e maneira não esquiva de aceitar sua presença à curta distância o fez pensar em como aquele poderia, assim como tantos outros, ser um animal criado para ainda na juventude virar pedaços em pratos de diferentes casas, em diferentes refrigeradores e para número indefinido de pessoas.

“Um olhar dócil, uma expressão que entendo como contentamento em comer o que é inerente à sua natureza para viver, uma reação inusitada diante do capim que coça-lhe as narinas, e depois dessas e de outras manifestações pacíficas de uma criatura a quem, quase na totalidade, não é dado lugar no mundo, há um desfecho doloroso num lugar para onde ninguém merece ser enviado.”

Pensou no encontro da docilidade com a crueldade, e no fim da inocência que precede cortes, bandejas e outras embalagens. “O que é a vida roubada? Um esvaziamento? Uma inconclusão? É uma certeza e ao mesmo tempo uma incerteza que despertou em mim necessidade de consideração.”

Quando o bezerro saiu dali, ainda o observou. “Um corpo em movimento, um coração batendo, um estado de consciência e vontade que motiva uma mudança de ambiente. Guia-se pelo que vê e pela energia que o habita. Lá adiante, junta-se aos outros. É criatura social e de decisão. E tantos como você perdem suas formas vivas o tempo todo. Na ‘idade propícia’, pra alguém cortar, mastigar e engolir.”

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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