Por trás da carne: “Foi horrível o abate de uma vaca prenha”

O mesmo matadouro recebia vacas que já não produziam uma quantidade de leite considerada viável pela indústria (Foto: Moving Animals)

Tyrone começou a trabalhar em um matadouro na região de Londrina (PR) pouco depois de completar 18 anos. Como auxiliar de serviços gerais, sua função era ajudar na limpeza após a matança de animais.

“Só ia no canto do abate depois que tiravam os animais de lá”, conta. Isso ajudava na proporção em que não ajudava, já que Tyrone sentia pavor de sangue. ”Fui obrigado a encarar esse medo.”

Os dias passavam e o rapaz não se acostumava. Não tinha coragem de ver o que acontecia minutos antes de encontrar o piso molhado pelo que restou de uma carnificina naturalizada e legalizada.

Olhos intumescidos e corpos se debatendo

“Eu tentava meio que me desligar”, conta. Mas vez ou outra viu sem querer. “Os animais pendurados de ponta-cabeça. Eles vinham no alto, e quem trabalhava nesses postos ficava em uma plataforma. A linha fazia umas curvas e a visão era limitada. Sabia o que ocorria, mas fiquei em choque.”

Tyrone testemunhou animais tentando resistir em vão, mesmo após a sangria. Os olhos intumescidos e os corpos se debatendo. Após a concussão que inutilizava seus cérebros, que poderia demandar vários disparos enquanto o animal gemia, a degola decretava a morte e fazia descer até 20 litros de sangue de cada bovino.

O matadouro também recebia vacas que já não produziam uma quantidade de leite considerada viável pela indústria. “Foi horrível o abate de uma vaca prenha – o que mais me impactou. Eles usavam uma ferramenta que dava choque pra fazer os animais andarem no corredor que leva ao abate.”

“Animal nem tinha morrido, mas já estavam tirando o couro”

Segundo Tyrone, as vacas prenhas eram “mais teimosas” e quase sempre empacavam. Não queriam entrar na linha de abate. Algumas, com muito medo, antecipavam o trabalho de parto. “Ainda assim, eram abatidas e os filhotes eram chamados de ‘carne de primeira’.”

Ele acrescenta: “Animais [muito] grandes acabavam sendo abatidos de forma manual [com o uso de marretas, por exemplo], porque davam trabalho pra morrer. Tive a sensação de que o animal nem tinha morrido, mas já estavam tirando o couro. Passei mal vendo isso.”

Os colegas de serviço diziam a Tyrone que, em algum momento, ele se acostumaria. Não se acostumou e, mesmo quando deixou o trabalho, não conseguiu mais comer carne.

“Nunca consegui almoçar lá por causa do cheiro”

“Eu tinha o estômago fraco, nunca consegui almoçar lá por causa do cheiro. Lembro que os funcionários não comiam quando serviam cupim. Falavam que os animais recebiam a ‘vacina do cupim’, porque às vezes dava doença nessa parte. Sentiam nojo. Mas lembro que eu não era o único que parou de comer carne ao entrar lá.”

Tyrone diz que é muito tenso relembrar essa fase de sua vida. Mesmo que seu trabalho fosse limpar as consequências da violência perpetrada por outros, e financiada pelos consumidores, ele não conseguia evitar de sentir-se mal.

“Era aterrorizante. Quando a gente chegava, os animais já estavam confinados em um espaço, mas ainda vivos. Na minha infância, morei em chácara, a gente comprava leite de um senhor que criava vacas leiteiras, e comecei a pensar se alguns daqueles animais terminaram lá.”

Observação

Tyrone é um nome fictício para preservar a identidade do entrevistado.

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Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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