
Como o veganismo se sustenta na reprovação da opressão contra os animais e na defesa da libertação animal, sua motivação antiopressão já é uma motivação política. Como o veganismo rejeita hierarquias arbitrárias (especismo), ele automaticamente confronta sistemas de dominação e defende transformações culturais e econômicas.
A política está na base do veganismo, na relação entre ética, poder e estruturas de opressão. Logo a política surge justamente para reorganizar relações de poder (entre humanos e animais não humanos). Ao questionar a indústria alimentar, a cultura do consumo e as normas sociais que tratam animais como mercadorias, o veganismo se insere em um debate mais amplo sobre ética, justiça e direitos.
Não por acaso, já defendi em uma pesquisa que veganos são mediadores socioculturais que ressignificam os sentidos do consumo e da política ao pensá-los em relação com os animais não humanos – propondo uma superação da compreensão do consumo e da política somente na relação de humanos com outros humanos.
No veganismo a decisão de não explorar animais não é um ato privado, mas um desafio às estruturas de poder que legitimam a violência contra seres sencientes. Logo, não consumir produtos de origem animal, por exemplo, é um ato político porque antagoniza cadeias de produção baseadas em exploração.
A política no veganismo também está no fato de que seu impacto depende de sua força coletiva. Até porque, se pensado como meramente individual e bastando-se nisso, como o veganismo pode crescer e gerar impacto? É na interação com o outro e nos estímulos decorrentes dessa interação que as transformações ocorrem.
Hoje, há pessoas que, mesmo contra a exploração animal, podem não entender ou discordar do seu veganismo como político, mas isso não significa que não seja, e sim que provavelmente elas têm uma percepção reducionista, enviesada ou equivocada do político – e que também pode decorrer de processos de apropriações.
Ademais, a ética na sua dimensão política e vice-versa pode ser pensada a partir do que foi observado por Aristóteles, quando ele coloca ética e política como inseparáveis, a partir do reconhecimento de que escolhas individuais têm consequências coletivas.
Sobre isso, podemos considerar o que é normalizado e reproduzido a partir da exploração animal. Se a maioria que participa disso passa a contestar isso por reconhecer tal exploração como um mal, há uma ação política como dimensão ética.
Enfim, se queremos promover transformações, o veganismo depende não apenas de rejeitarmos a participação na exploração animal, e o próprio especismo, como envolver o maior número possível de pessoas nisso.
Essa motivação do “envolvimento” é política – pela compreensão de que a dimensão de mudança é uma dimensão estrutural, que envolve uma dimensão social, sistemas de produção-consumo e normas culturais, assim como práticas e valores institucionalizados.
Não favorecemos uma grande mudança mudando somente a nós mesmos, sem estimular nos outros uma crescente recusa em participar das estruturas de opressão que justificam a existência do veganismo para antagonizá-las.
Enfim, o veganismo é inerentemente político, mesmo quando não é explicitamente enquadrado como tal – porque o que ele preconiza é o fim da opressão, institucionalizada e não institucionalizada. E não podemos deixar de pensar em como ela ocorre também em espaços naturais, impactando na vida silvestre.
Podemos conciliar o político no veganismo com outras questões também. Afinal, seria um erro ignorar que não há nada de político na defesa do acesso a uma alimentação de boa qualidade e saudável à base de vegetais. A dimensão do político está em tudo que pode ser pensado hoje em relação ao veganismo – do mal contra os animais à defesa de uma alimentação mais inclusiva e às consequências dos impactos ambientais (que afetam também tantos animais).
A “boa vida”, postulada por Aristóteles em uma comunidade organizada (polis), só seria possível se as escolhas individuais tivessem consequências coletivas. Portanto, se entendemos que seria um erro defender “boa vida” perpetuando opressão, resta-nos mostrar a outras pessoas como suas escolhas têm impacto coletivo – e que têm também uma dimensão política de impacto, e exatamente pelo que já foi apresentado, mesmo quando normalmente impercebida.
Consumo como político
A recusa em consumir produtos animais não é apenas uma escolha pessoal, mas um ato de resistência a uma estrutura que normaliza a violência institucionalizada contra seres sencientes.
Dimensão coletiva e mudança estrutural
O veganismo não se sustenta apenas no indivíduo, mas na capacidade de mobilizar transformações culturais e econômicas. A política surge justamente na tentativa de reorganizar relações humanas-não humanas.
Ética como projeto político
Se a ética só se realiza plenamente na polis, então a recusa à exploração animal só ganha impacto quando se torna um projeto social (envolvimento coletivo). Isso implica em disputar narrativas (como a “normalidade” do consumo de carne), pressionar por políticas públicas (como subsídios a alimentos veganos) e confrontar interesses econômicos (a indústria pecuária).
Individualismo vs. coletividade
O veganismo não se basta no indivíduo exatamente porque o o impacto do veganismo está na coletividade, não na individualidade. Afinal, como crescer sem a coletividade? Assim, sua constituição na forma de um movimento que para promover mudanças deve resistir à passividade é uma expressão do que em si é inerentemente político. Crer que o veganismo é uma “escolha pessoal” reflete uma visão despolitizada, mas também revela um desafio: como mobilizar pessoas que não enxergam suas escolhas como parte de um sistema? A resposta pode estar justamente em mostrar que a exploração animal é uma instituição (como foi a escravidão humana) e que mudanças exigem ação organizada.
Movimento massivo
O veganismo hoje para crescer depende também de alternativas alimentares que sejam atrativas e acessíveis para o maior número possível de pessoas – que cheguem a mais lugares também, não somente aos grandes centros urbanos. Reconhecer e defender isso também é outra dimensão política do veganismo – porque sabemos que se o veganismo parecer difícil para as pessoas, mesmo que não seja, elas não se sentirão estimuladas e o movimento falhará em ser massivo.
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5 respostas
O problema, talvez, esteja então na confusão entre ação política e representação partidária. O veganismo seria mais de “esquerda” ou de “direita”? Ou nem uma e nem outra? Será que se deveria dizer que ele é mais marxista ou mais liberal, mais “woke” ou mais conservador?
Será que os interesses dos animais serão levados a cabo quando entrarem em conflito com algum interesse humano, seja de origem política, econômica, social ou cultural (enquanto moda e vestuário, tradição alimentar ou “esportiva”, ritual ou cerimônia religiosa ou sacrificial, metodologia científica etc.)?
Para que muitas dessas atividades humanas não aconteçam, quando há animais envolvidos, é preciso que a ética postulada pelo veganismo seja considerada em primeiro lugar, sem concessões, dentro do contexto ideal que propomos, de respeito e preservação à integridade física e psíquica dos viventes não humanos.
De fato, isso não se faz sem atuação política e debate coletivo, na rua ou na Câmara e no Senado. Então, suspeito de que toda essa celeuma dentro do movimento veg é devido ao fato de partido A ou B querer ditar que o veganismo é mais condizente com a sua corrente ideológica.
Pros animais pouco importa se a pessoa lulista ou bolsonarista, de esquerda ou de direita, preta ou branca; homem ou mulher (cis ou trans) gay ou alfa, prostituta ou freira, devota ou nietzschiana. Se esse humano é ativamente antiespecista e atua no intuito de defendê-los, é isso o que faz a diferença pra eles. O resto, pelo que vejo, é o pessoal mais preocupado em querer ter razão e defender o seu entendimento de veganismo nas redes sociais, e se o “outro” discordar, então tá errado, “eu” é que tô certo. Isso não é específico do veganismo, há em toda luta social por ética, justiça e direitos.
Talvez por que não um haja Partido Vegano Brasileiro? Faria sentido ter essa sigla?
David, você conhece uma autora chamada Martha Nussbaum e seu livro “justiça para os animais: nossa responsabilidade coletiva” (WMF Martins Fontes, 2023)?
Pela sinopse, pra quem pesquisa e atua em prol do veganismo, é um livro deveras interessante. Comecei a ler ontem. A autora explica sua teoria da Abordagem das Capacidades (AC) e discorda de alguns clássicos como Singer, ente outros.
Fica aqui a dica de leitura, talvez de uma futura opinião/crítica aqui no site sobre essa obra! Acho que umas das mais recentes a respeito dos direitos animais publicadas no Brasil.
Philipe, acho que já vi esse nome, mas creio que não li nada da autora. Obrigado pela sugestão.
Refletindo um pouco sobre a questão individual/coletiva, não seria subestimar um pouco a ação individual?
De que adianta fazer ativismo na rua e indicar um documentário, por exemplo, se a pessoa não tiver interesse em assistir? A gente pode obrigar? Claro que não.
Por isso acho que a iniciativa individual, a vontade de mudança e a compaixão surgem no âmbito subjetivo de cada indivíduo, na consciência de cada um. O coletivo não seria apenas a soma dessas consciências em prol de uma mesma causa?
Quando falo em ativismo, não penso especificamente em ativismo na rua, mas de forma plural e pode ser até mesmo algo que não seja uma interpelação a alguém – considero todas as interações possíveis (até mesmo indiretas) que podem levar a uma mudança, inclusive on-line, assim como produções em que sequer há um contato direto entre quem produz e quem tem contato com o que é produzido.