Leite é uma porção de dor de vaca

Boca aberta mirando o céu, olhar vacante e mugido prolongado que ouve-se ao longe (Foto: AP)

Boca aberta mirando o céu, olhar vacante e mugido prolongado que ouve-se ao longe. É duradouro – pelo que não é visto nem sentido. Para por algum tempo e começa tudo de novo. Ausência machuca. E a impotência de ter vencida uma inerente vontade? Como poderia ser diferente? Sendo senciente, consciente…

É lamento de alguém recém-separada do filho. Ao redor, todas passam e passarão pela mesma situação, que se repete à exaustão – até não poder mais gerar vidas ou “boa quantidade” de leite. Então juntam-se aos machos, acrescentando mais números aos bilhões que tombam no matadouro.

O que a sociedade diz sobre mãe separadas dos filhos? É o que não diz sobre vacas separadas dos bezerros. Bicho não humano sofre uma sequência de obliterações ao longo da vida – até ser sentenciado à obliteração final. “Vaca não é gente, com o tempo esquece dos bezerros.”

Ainda que isso fosse verdade, nós não esquecemos, e por isso não deveríamos ter a obrigação moral de ponderar sobre tal implicação? Dor de mãe não humana também é real, e independente de duração, a separação é um exercício de violência, tanto imediato quanto posterior – basta pensar no premeditado culminar da morte.

Quando citam a memória não humana como inferior, tentando justificar a exploração animal, numa crença de menor “validade de emoções e sentimentos”, lembro de pessoas com doenças ou limitações associadas à memória.

Afinal, partindo da capciosa colocação – de que “vacas esquecem” – usar disparidades na construção ou preservação da memória como argumento pró-exploração me faz concluir que seria como dizer que quem “acumula menos memórias” ou “possui menor exercício de atividade de retenção de memória” demandaria menor consideração moral. Como isso pode ser aceitável?

Não creio que possa. Sobre animais explorados para consumo, minha consideração moral não deve ser articulada a partir de “limitações de desconsideração” em relação aos outros animais, sejam reais ou irreais, porque isso é recurso de esvaziamento pela conveniência. Se uso essas “limitações” para justificar exploração, o que estou fazendo é combater minha capacidade de ponderar sobre os enganos da minha percepção sobre a realidade.

Gosta do trabalho da Vegazeta? Colabore realizando uma doação de qualquer valor clicando no botão abaixo: 




Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *