Carnificina não deveria ser associada ao prazer do apetite

“Nos abstermos da carne dos animais é animar e promover a inocência” (Imagens: Wikimedia Commons)

Séneca, o intelectual romano a quem o escritor português Jaime de Magalhães Lima admirava, dizia, inspirado em Focion, que o ser humano precisa reconhecer a sua capacidade de encontrar alimentos sem o derramamento de sangue. Do contrário, a crueldade há de ser mantida como hábito, já que a prática da carnificina passa a ser associada ao prazer do apetite.

“Acrescentava ele que é nosso dever limitar os materiais da luxúria. […] Se estas máximas [da escola de Pitágoras] são verdadeiras, então nos abstermos da carne dos animais é animar e promover a inocência; se mal fundadas, ensinam-nos ao menos a frugalidade e a simplicidade da vida. E que perdeis vós perdendo a nossa crueldade? Apenas vos privo do alimento dos leões e dos abutres”, cita Magalhães Lima no livro “O Vegetarismo e a Moralidade das Raças”, publicado originalmente em 1912, mas reeditado e relançado inúmeras vezes desde então.

Depois de mais de um ano de abstinência de alimentos de origem animal, Séneca disse que não apenas era fácil ser vegetariano como prazeroso. Alegou também que as faculdades do seu espírito se tornaram mais ativas. “É acostumar-nos a derramar o sangue humano degolar animais inocentes e ouvirmos sem piedade seus tristes gemidos. É desumanidade não nos comovermos com a morte do cabrito, cujos gritos tanto se assemelham aos das crianças, e comermos as aves a que tantas vezes demos de comer. Ah! quão pouco dista d’um enorme crime!”, transcreve Magalhães Lima, fazendo menção a um registro de Ovídio.

Outro argumento que reforça o posicionamento do português em relação à abstenção da carne é o fato de que para ganhar sabor é preciso submetê-la a um processo de transformação. “Qualquer dama de mãos mimosas que trinca com delícia uma costeleta coberta de pão e embalsamada em louro, em cravo, em salsa, em cebola, pimenta e limão, empalidece de náusea sentindo o cheiro do açougue, considera imundície um pedaço de carne crua nos seus vestidos, e foge mais depressa da praça do peixe do que da montureira que aduba a horta”, critica.

Na perspectiva de Magalhães Lima, na cozinha vegetariana ocorre o oposto. O esmero e a perfeição consiste em conservar inalterável o sabor próprio de cada alimento.

“Muitos e muitos [em referência às crianças] que seriam incapazes de roubar de qualquer salgadeira um grama de toucinho, não resistem à tentação de se aproveitarem do primeiro cacho de uvas que lhes esteja à mão. Os assaltos às hortas e pomares são frequentes, e de tal forma isso parece estar na ordem natural que grande número dos homens rudes não lhes associe nem de longe a noção do crime. Longos séculos de corrupção da dieta não conseguiram atrofiar essas tentações de uma antiguidade bíblica, as mesmas que desgraçaram Adão e Eva”, compara em “O Vegetarismo e a Moralidade das Raças”.

Jornalista e especialista em jornalismo cultural, histórico e literário (MTB: 10612/PR)

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