Categorias: Pequenas Narrativas

No matadouro o corpo vivo encontra o corpo morto

Foto: Unparalleled Suffering

Observava a cabra perto da carne que não diferia da sua própria – a forma viva e a forma morta. O que a separava daquela forma despedaçada era apenas um tempo que diminuía. A forma sem pelo, sem corpo reconhecível – os pedaços que mostravam que estar em um lugar é também estar em outros lugares.

O estar em pé, com a corda no pescoço, e o estar numa mesa, e então em outras mesas, próxima de animais que também teriam o mesmo fim. A vez de um é a vez de outro, e vão intercalando o peso das imposições até o desaparecimento. A diferença nunca é outra, senão de tempo e estados.

O agora e o depois. O corpo vivo conhece o corpo morto, e mesmo quando não conhece, quem dirá que o corpo vivo espera ser o corpo morto? A carne é como exposição de intimidades, o que se é de dentro e está fora é para expor o que não poderá voltar a ser, o que é irreversível sobre a subtração de um viver.

O animal é para a mesa. Quantos animais não são para a mesa? Estar em pé só para não estar. É como se dissessem que os pés existem para a sustentação da carne, não do corpo, e que deve ser pensada numa ideia de prevalecimento sobre o corpo.

Por que falar em corpo? O corpo então é um vazio, embora o animal continue ali, expondo sua corporalidade, evocando o que sobre ele deve ser percebido somente como carne? O animal não olha para a carne, ele olha para quem olha a carne.

Não é revelador e perscrutador esse olhar? Podem dizer que é impressão, só impressão, antropomorfização, e mesmo que seja, por que não pensar no que pode haver de verdade nessa atribuição?

Leia também “A luta de um boi que não escapou do matadouro“, “Um novilho escapou do matadouro, mas não sabia para onde ir“, “Consumidores querem carne, mas também querem o matadouro longe deles” e “Por que animais que fogem do matadouro não são vistos como vítimas?

David Arioch S.A. Barcelos

Jornalista (MTB: 10612/PR) e mestre em Estudos Culturais (UFMS).

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